Ao longo da história, o mar e suas ilhas foram considerados vastos planaltos de possibilidade — espaços onde se poderia recomeçar do zero, onde os fardos das obrigações sociais, legislações e tributação seriam suspensos, permitindo que formas alternativas de vida social e política viessem à superfície. Esta fantasia de liberdade — ancorada na fuga aos constrangimentos da costa —, referida em diferentes mitos e contos de várias culturas, tem acompanhado o capitalismo desde o seu surgimento. A ideia do mar enquanto reino de liberdade ressoa não apenas no imaginário cultural, mas também na doutrina legal, uma vez que o alto-mar (também referido como águas internacionais) corresponde às áreas dos oceanos e mares mundiais que não estão sujeitas à soberania de qualquer nação — tipicamente começam a 12 milhas náuticas da linha de costa, para lá do mar territorial.
Se a vastidão do oceano é associada a uma liberdade sem limites, a ilha é há muito o lugar arquetípico onde a humanidade projeta visões de um mundo diferente. Em Utopia (1516), Thomas More estabeleceu a insularidade como geografia primária da esperança, cunhando o termo que viria a ser usado para definir visões de futuros alternativos e prósperos, mas também a possibilidade de se tornarem no seu oposto (distopias). No seu todo, as condições espaciais, legais e imaginativas do mar e suas ilhas possibilitam a criação de estados de exceção — zonas extraterritoriais onde o pensamento utópico, e a sua sombra distópica, podem ambos tomar forma.
Se tivesse de escolher um objeto contemporâneo que condensa de forma mais vívida as fantasias libertárias, utópicas e maioritariamente masculinas possibilitadas pelo mar e suas ilhas, enquanto sintetiza as obscenas disparidades de riqueza, mobilidade e impacto carbónico, esse objeto seria o superiate. Mais do que um símbolo de excesso e estratificação social, o superiate corporifica um imaginário mais profundo, no qual o oceano e as ilhas são há muito entendidos como um espaço de separação e isenção, um limiar para lá do alcance da ordem, autoridade e classe terrestres, uma fuga à vida e à política em terra. Neste texto defendo que os superiates herdam e materializam estes mitos marítimos, incorporando promessas de liberdade e soberania, separação e conexão, isenção e exceção, utopia e distopia. Simultaneamente produtos grotescos da acumulação neoliberal e emblemas de desigualdade, os superiates parecem encapsular o ethos de uma elite global que, desvinculada de um pertencimento territorial e desproporcionalmente responsável pelas crises planetárias, procura salvação através de formas exclusivas de isolamento e autossuficiência, em vez de soluções coletivas — revelando assim como a utopia de poucos se desenrola como a distopia de muitos.
1. O Mar Como Palco: Continuidades nas Dinâmicas Capitalistas Onshore e Offshore
Frans Huys, Armed Four-Master Putting Out to Sea from The Sailing Vessels
Em Capitalism and the Sea: The Maritime Factor in the Making of the Modern World [Capitalismo e o Mar: o Fator Marítimo no Fazer do Mundo Moderno] (2021), Liam Campling e Alejandro Colàs relatam como o nosso sistema económico é primariamente um fenómeno marítimo ou, nas suas palavras, “um dilema terraquoso”. Como muitos outros historiadores têm argumentado, o Oceano Atlântico foi o motor central da ascensão do capitalismo moderno, uma vez que este vasto domínio marítimo foi palco de um dos sistemas comerciais mais brutais alguma vez concebidos: o comércio triangular, que ligava África, Américas e Europa num circuito de exploração e morte, o qual possibilitou a chamada ‘acumulação primitiva’ que alimentou o surgimento do capitalismo. Segundo Campling e Colás, se o mar teve um papel central neste processo de expansão colonial e acumulação, hoje ainda desempenha esse papel na sustentação do capitalismo: o comércio global, as cadeias de abastecimento, os cabos submarinos de Internet e as novas possibilidades de extração de recursos dependem consistentemente de redes marítimas. Neste sentido, poder-se-ia argumentar que também o seu futuro está estritamente ligado ao mar — a última fronteira do capitalismo1, como alguns académicos o descreveram — pois, ao contrário do espaço terrestre onde quase toda a terra é reivindicada por Estados, vastas extensões e recursos dos oceanos permanecem um ‘comum’ global, uma raridade num mundo maioritariamente privatizado e mercantilizado.
Nesta longa relação histórica entre o capitalismo e o Oceano Atlântico, Campling e Colás identificam uma continuidade persistente: a interação e tensão entre onshore e offshore, terra e mar — uma dinâmica que moldou o desenvolvimento inicial do capitalismo e continua a estruturar as suas operações atuais. Esta divisão, herdada do mercantilismo, concebe o onshore como domínio regulado dos mercados domésticos, onde as mercadorias importadas são vendidas a preços elevados; e o offshore como o espaço onde recursos são extraídos de barato, livremente comercializados ou violentamente apropriados. No entanto, o offshore sempre significou mais do que exploração material: é um reino de isenção e exceção, um outro lugar legal e político onde as regras, costumes e éticas comuns que regem a vida em terra são temporariamente suspensos. As ilhas atlânticas e suas colónias personificavam esta divisão com um cinismo brutal. O isolamento estratégico, possibilitado pela água circundante e vastos recursos naturais, tornou-as simultaneamente locais de extração para potências imperiais e laboratórios para aplicar práticas exploratórias inimagináveis em terra. A dualidade onshore-offshore possibilitada pelo mar não só definiu o colonialismo e o capitalismo inicial, como continua a sustentar a economia global hoje, uma vez que muitas destas ilhas servem ainda as dinâmicas do offshoring de novas formas.
Com a ascensão do neoliberalismo na década de 1980, o desmantelamento das barreiras nacionais ao comércio e a desregulamentação dos sistemas financeiros tornaram o capital cada vez mais fluido — atravessando fronteiras e circulando de forma instantânea pelas mais recentes tecnologias digitais, escapando à regulação através de complexas arquiteturas offshore. Embora o offshoring tenha proliferado em diferentes domínios desde a década de 1980 (mão de obra, eliminação de resíduos, legislação, etc.), os paraísos fiscais são talvez a manifestação mais crucial desta prática. Trata-se de centros financeiros offshore que oferecem sigilo, tributação mínima e quadros legais flexíveis a empresas e clientes privados. Albergam empresas-fantasma, esquemas de seguros, bandeiras de conveniência, datacenters e fundos opacos, ocultando propriedade e riqueza. Hoje, cerca de 83% das grandes empresas europeias mantêm subsidiárias offshore; mais de metade do comércio global passa por tais jurisdições; quase todos os indivíduos com alto património líquido detêm contas offshore para evasão fiscal; e 99 das maiores empresas europeias dependem de estruturas offshore. Como resultado, entre um quarto e um terço da riqueza global flutua para lá do alcance da supervisão nacional — à deriva no offshore (Urry, 2013). O offshoring perpetua uma geografia da desigualdade, permitindo que os super-ricos evitem tributação, prestação de contas e redistribuição. Consolida o privilégio enquanto corrói os fundamentos fiscais e sociais do mundo onshore. O que outrora era uma relação colonial entre centro e periferia assume agora a forma de um desequilíbrio sistémico entre aqueles que podem acumular e mover capital livremente — as empresas e os ultra-ricos — e aqueles que não podem.
Em Offshoring (2014), Jonathan Urry aponta o mar como a chave contemporânea para a evasão fiscal. Como observa, com algum humor, “os paraísos fiscais bem-sucedidos operam com baixos impostos, gestão de património, desregulamentação, sigilo e, frequentemente, praias agradáveis”. Cerca de 60% dos paraísos fiscais do mundo estão localizados em ilhas, com apenas algumas exceções fora de estados costeiros. Só no Atlântico, das vinte e oito jurisdições comumente reconhecidas como paraísos fiscais, vinte e quatro são ilhas, outrora colónias ou dependências ultramarinas de impérios europeus. Estas ilhas, antes postos avançados periféricos da expansão mercantilista e colonial, herdam e atualizam agora (em termos financeiros) essa mesma divisão entre o onshore e o offshore.
Campling e Colás explicam esta persistência através de fatores tanto materiais como simbólicos. Materialmente, os pequenos Estados insulares em desenvolvimento (SIDS, na sigla em inglês) possuem poucas opções de exportação para além do turismo e da pesca, e a banca offshore permite-lhes mercantilizar as suas próprias jurisdições, vendendo a soberania legal como ativo económico, adaptando as leis bancárias e fiscais às preferências dos seus ricos clientes onshore. Simbolicamente, o oceano e as suas ilhas há muito que servem de tela para a projeção utópica e libertária, pois permitem a criação de diferentes espaços de exceção. De postos avançados coloniais a paraísos fiscais, de espaços de luxo e futurismo como os arquipélagos artificiais no Dubai, a locais de encarceramento como Guantánamo, ou enclaves insulares privados onde se liberavam fantasias sexuais, como a ilha de Epstein — a insularidade tem permitido sofrimento, privilégio e impunidade, continuamente. Estes espaços revelam como o isolamento sustenta a coexistência da utopia e da distopia, e como a seclusão se torna condição tanto para a liberdade como para a dominação e fuga.
Dentro da genealogia da exceção marítima, o superiate pode ser entendido como produto e como performance da condição offshore — uma corporificação contemporânea das fantasias libertárias e utópicas historicamente projetadas no mar. Funcionando como uma ilha móvel, materializa a soberania da insularidade, a liquidez do capital e do estilo de vida, e a opacidade que define tanto o mar como os mundos offshore. Dá forma parcial a um sonho secular de autonomia face à ordem terrestre: a aspiração de habitar um reino autossuficiente, livre da lei, da tributação e da responsabilidade coletiva. Neste sentido, o superiate revive o imaginário marítimo de liberdade dos impérios náuticos, dos piratas e das ilhas utópicas, agora reenquadrado pelo individualismo e consumismo neoliberais, com o colapso planetário como cenário de fundo.
2. Superiates e a Elite Offshore: Liberdade, Privilégio e Fuga
Azzam, the world’s largest superyacht (180 metres)
Para a qualificação como superiate, como o termo indica, o tamanho é fator decisivo. Um iate convencional torna-se super aos 30 metros, embora muitos atinjam comprimentos extremos (Salle, 2024). É o caso do Azzam, um navio impressionante de 180 metros, propriedade do príncipe dos Emirados. Comprar um navio ‘médio’ custa cerca de 30 milhões de euros, enquanto os modelos mais extravagantes podem chegar aos 600 milhões de euros. A compra destes palácios flutuantes é apenas um investimento inicial, uma vez que a sua manutenção exige recursos avassaladores. Um barco de 70 metros pode consumir até 700 litros de combustível por hora (cerca de 1000 €) e mais do dobro disso à velocidade máxima. Escusado será dizer que fretar um por uma semana pode atingir custos astronómicos, com uma pegada de carbono equivalente à média de vários anos de vida de uma pessoa em terra (Salle, 2024).
Dentro destes palácios flutuantes, o luxo assume formas absurdas. No comprimento do Azzam, por exemplo, cabem um ginásio, um cinema, duas piscinas, uma sala de treino de golfe e dois heliportos. No Al Said, com 155 metros de comprimento, uma sala de concertos suficientemente grande para uma orquestra de cinquenta músicos. O relativamente "modesto" Serene (apenas 134 metros) inclui uma sala onde máquinas de neve produzem dez centímetros de neve sob comando. Embora as dimensões incríveis destes navios possam acomodar diferentes ambientes e extravagâncias, e independentemente do tamanho do barco, os regulamentos marítimos permitem apenas doze hóspedes a bordo (Khalili, 2024). O número de tripulantes, no entanto, é ilimitado, desde que tenham concluído a formação obrigatória em sobrevivência no mar. Esta distinção regulatória torna estes barcos num espetáculo ainda mais marcante: navios palacianos que custam centenas de milhões servem, em última análise, não mais do que uma dúzia de convidados — uma exclusividade que sublinha gritantemente a opulência da riqueza, as desigualdades da economia global e o custo ambiental.
Como aludem os anedóticos parágrafos anteriores, possuir um superiate é um privilégio restrito a uma fração microscópica da humanidade: os super-ricos. Embora possam diferir em nacionalidade, setor de atividade ou política, o que os une para além da sua enorme riqueza é o género. Esta competição por tamanho, poder e prestígio é inteiramente um assunto masculino. Entre os quarenta maiores superiates privados, uma impressionante percentagem de 87,5% é propriedade de homens individuais, nem um único pertence a uma mulher; os restantes 12,5% pertencem a Estados, famílias reais ou corporações. Por outras palavras, o superiate permanece o derradeiro brinquedo flutuante para rapazes, um monumento à masculinidade insuflada a proporções náuticas, com realeza e bilionários ao leme.
Contudo, quando observado atentamente, o superiate não é apenas um objeto de luxo para uma fração microscópica da humanidade, mas também um espelho das estruturas e contradições do capitalismo contemporâneo. É ao mesmo tempo produto e sintoma das dinâmicas onshore–offshore que, como Campling e Colás nos recordam, moldam o capitalismo desde as suas origens. Simultaneamente ilha móvel, paraíso fiscal flutuante e enclave de exceção em movimento — um local seguro para armazenar riqueza —, condensa numa única arquitetura o aumento da desigualdade, a aceleração do colapso ecológico e a persistência da segregação legal e espacial. O superiate corporifica a lógica de uma elite transnacional cuja mobilidade depende da imobilidade e da despossessão de outros.
Quando visto como ilha móvel, o superiate revive e distorce a ideia antiga do espaço de possibilidade, transformando-a numa arquitetura flutuante de exclusão e isenção onde a liberdade é privatizada e sustentada pela desigualdade e exploração extremas. Tanto a ilha como o iate materializam fantasias de autonomia e isenção, microcosmos soberanos à deriva das obrigações da vida coletiva em terra (onshore). O superiate possibilita a convicção libertária de que a liberdade pode ser alcançada através da retirada e não da relação, da evasão e não da responsabilização. Concretiza uma fantasia espacial de soberania desvinculada do território — um microestado autossuficiente, sustentado por infraestrutura privada, capaz de navegar por jurisdições e climas à sua vontade.
Enquanto paraíso fiscal flutuante, é resultado e reprodução da economia offshore, operando através das mesmas ficções legais que a sustentam. A maioria dos superiates está registada sob bandeiras de conveniência emitidas pelas mesmas ilhas que ancoram a economia offshore. Através destes registos, os proprietários podem reduzir drasticamente os custos de compra, manutenção e operação destes navios, canalizando as suas transações financeiras por camadas de empresas offshore e beneficiando dos regimes de trabalho desregulamentados destes territórios, onde as proteções laborais são mínimas e a precariedade é normalizada. Muitos residem a bordo por mais de três meses para reivindicar o estatuto fiscal de não-residente nos seus países, estendendo a sua isenção para lá do mar. Neste sentido, o superiate não simboliza meramente o offshore — ele executa-o, performando o ocultamento, a desregulamentação e a evasão como formas de vida.
Enquadrados como enclaves de exceção, os superiates materializam não apenas riqueza em movimento, mas uma soberania quase ilimitada. Ocupando um limiar jurídico e político peculiar, são isentos das restrições do território, da tributação e do direito laboral, mas dependentes das infraestruturas e jurisdições que eles próprios iludem. Em terra (onshore), os proprietários estão sujeitos à legislação nacional e ao escrutínio público; mas offshore, em águas internacionais, deslizam para um estado de exceção onde as regras se dissolvem em evasão. Aqui, o mar torna-se não um vazio, mas um meio legal maleável: um que permite aos poderosos ajustar a sua exposição à autoridade.
Como vários jornalistas de investigação e economistas têm observado, os superiates são também “veículos ideais para ocultar e proteger riqueza” (Gabriel Zucman, The Hidden Wealth of Nations: The Scourge of Tax Haven [A Riqueza Oculta das Nações: o Flagelo dos Paraísos Fiscais], 2016). As recentes apreensões de embarcações de oligarcas russos tornaram-no visível, uma vez que os seus ativos flutuantes se transformaram subitamente em reféns geopolíticos. Por exemplo, o Amadea — um iate de 106 metros ligado a Suleiman Kerimov, registado nas Ilhas Caimão e detido através de uma empresa-fantasma local — foi apreendido nas Fiji, tal como muitos outros por todo o mundo. Tais casos revelam como também a riqueza oligárquica circula numa teia de bandeiras de conveniência e registos offshore, explorando a geografia e a legislação do mar para evadir a tributação e prestação de contas.
Os superiates não encapsulam apenas a liquidez e a opacidade do capital, mas também o estilo de vida da elite global. Logo em 1967, em Everyday Life in the Modern World [Vida Quotidiana no Mundo Moderno], Henri Lefebvre observava que “os Olimpianos da nova aristocracia burguesa já não habitam. Vão de hotel a grande hotel, ou de castelo em castelo, comandam uma frota ou um país a partir de um iate. Estão em todo o lado e em lado nenhum” (p. 94). Este comentário mantém-se surpreendentemente relevante ainda hoje: a hiper-mobilidade dos super-ricos permite-lhes contornar os constrangimentos legais, sociais e económicos que governam a vida das pessoas comuns. Os super-ricos corporificam uma versão luxuosa e distópica da condição da modernidade líquida de Zygmunt Bauman, na medida em que representam uma ordem social na qual a estabilidade é desvalorizada e o poder reside na capacidade de permanecer em movimento, de escorregar através das estruturas sólidas do afeto, da regulação, da tributação e da prestação de contas. Os superiates materializam esta liquidez: soberania sem ancoragem, pertença sem apego. Como notam Rowland Atkinson e Sarah Blandy em A Picture of the Floating World: Grounding the Secessionary Affluence of the Residential Cruise Liner [Uma Imagem do Mundo Flutante: Aterrando a Afluência Secessionista do Cruzeiro Residencial] (2009), esta capacidade de mobilização “à vontade”, tanto do capital como de si próprio, produziu uma classe supranacional que está além da regulação — uma “elite cinética” a navegar por um arquipélago transnacional de superiates, ilhas privadas, complexos de luxo e enclaves exclusivos, construindo um estilo de vida baseado no movimento e no desapego. Esta hipermobilidade destabiliza as noções convencionais de nacionalidade e soberania. Como Emma Spence argumenta em Beyond the City: Exploring the Maritime Geographies of the Super-rich [Para lá da Cidade: Explorando as Geografias Marinhas dos Super-ricos] (2017), a capacidade de ocultar riqueza, estatuto e identidade através do movimento contínuo de ativos e corpos entre jurisdições obriga-nos a repensar o que significam a nacionalidade e a responsabilização para a elite contemporânea.
No entanto, por detrás das suas performances de autonomia e mobilidade, encontra-se um sistema de hierarquia rígida, uma vez que a arquitetura e o funcionamento dos superiates reproduzem as mesmas estruturas de desigualdade e estratificação social que sustentam a vida em terra. Tripulação e hóspedes habitam zonas estritamente segregadas: suítes privadas, piscinas e áreas de entretenimento para os proprietários; corredores de serviço invisíveis e quartos minúsculos para o pessoal. Apenas alguns membros da tripulação interagem com os hóspedes; a maioria permanece invisível, mantendo a perfeição do navio a partir do convés inferior —algo brilhantemente retratado em Triângulo da Tristeza (Triangle of Sadness). O emprego nestes barcos também espelha a precariedade global, uma vez que poucos membros da tripulação são diretamente contratados pelos proprietários: tipicamente, apenas o capitão detém um contrato de longo prazo, os outros trabalhando a curto prazo, como freelancers e frequentemente sem benefícios.
Ao mesmo tempo, os superiates são produtos de desigualdades estruturais e de uma divisão acentuada da riqueza. Eles exemplificam como uma minúscula minoria vive uma realidade económica e social vastamente diferente do resto do mundo. De acordo com a Oxfam, em 2023, o 1% mais rico da população mundial apropriou-se de quase 63% da riqueza criada entre 2019 e 2021. Neste contexto, é impossível não ver os superiates como manifestações físicas dessa desigualdade. Estas utopias flutuantes, onde a isenção e o privilégio conferem liberdades negadas à maioria, vagueiam por um mundo de mobilidade, isolamento e exceção, enquanto o resto da humanidade permanece ancorado a um mundo terrestre altamente regulado, cada vez mais precário, e ameaçado pelo colapso ecológico e social.
3. Utopias para Poucos, Distopias para Muitos
the submersible that imploded in June 2023, killing five people. Photograph: American Photo Archive/Alamy/PA
Como qualquer outra utopia, os superiates são simultaneamente projeção e paradoxo: o sonho de perfeição para poucos, construído sobre a exclusão de muitos. Tal como as ilhas, eles materializam a contradição no cerne do pensamento utópico: a promessa de liberdade que depende da separação, do privilégio e da despossessão. Esta tensão já estava inscrita no próprio texto que cunhou a palavra utopia. No livro de Thomas More, o navegador português Rafael Hitlodeu denuncia a ganância e a desigualdade europeias, ao mesmo tempo que relata a descoberta de uma ilha (Utopia) onde a propriedade é partilhada e a opressão abolida. No entanto, a narrativa esconde uma origem mais sombria: a Utopia foi outrora parte do continente, até que o seu rei, após desapossar a população local, ordenou que fosse “cortada” do continente através de trabalho forçado. O nascimento de cada Utopia parece estar inevitavelmente ligado à exclusão e à violência (Campling e Colás, 2022).
O superiate, enquanto ilha flutuante, corporifica o mesmo paradoxo. É simultaneamente a fantasia libertária da elite dominante — móvel, soberana e isenta — e um espelho distópico das desigualdades que definem a nossa época. Nos seus conveses, vislumbra-se toda a arquitetura da vida contemporânea: a divisão do trabalho, a estratificação espacial e a fuga dos poderosos à tarefa de encontrar soluções para a maioria do planeta. O teórico dos media Douglas Rushkoff argumenta que, desde a década de 1980, os ultra-ricos abandonaram qualquer pretensão de sobrevivência coletiva em favor do que ele chama a “equação insular” — a crença de que “os vencedores serão aqueles que conseguirem escapar” (2023, p. 69). Os superiates são a mais recente materialização desta fantasia de isenção: zonas extraterritoriais onde os ricos ensaiam a sobrevivência no luxo, enquanto o mundo à sua volta luta para se manter à tona.
Considerando as crises ecológicas atuais, podemos ver como os superiates encapsulam um desejo não apenas de liberdade através do mar, mas também de fuga, uma vez que simbolizam tanto a negação das alterações climáticas como a opção de retirada da responsabilidade. Esta fantasia de fuga não é nova. Logo em 1919, Nikolai Bukharin descreveu o impulso burguês em tempos de crise como impulsionado pelo medo de uma catástrofe social iminente (Bukharin, 1919). Atualmente, as estratégias de fuga parecem estar a multiplicar-se. Quer seja em órbita, como é o caso das colónias marcianas da SpaceX, quer seja em águas internacionais, como as comunidades flutuantes do Seasteading Institute — comunidades privadas e extraterritoriais, para lá do alcance dos estados-nação —, todos estes projetos partilham o mesmo desejo: plantar bandeiras, fugir das consequências do sistema que se contribuiu para criar, e recomeçar do zero.
Se um navio massivo como o Titanic há muito serve como metáfora para a arrogância da classe dominante na sua rápida passagem da autoconfiança à autodestruição, o seu spin-off de 2023, o Titan, oferece uma imagem ainda mais precisa e pungente. Durante uma expedição privada aos destroços do Titanic no Atlântico Norte, um grupo de ultra-ricos embarcou numa aventura de 250 mil dólares num submersível de engenharia duvidosa, controlado por um comando de Xbox e operado para lá de qualquer supervisão regulatória. Quando a embarcação atingiu uma certa pressão, implodiu, causando a morte de todos a bordo. A história do Titan condensou a mesma mistura de desejo pelo desapego que anima a cultura mais ampla do escapismo da elite — do espaço sideral ao fundo do oceano —, mas sobretudo a mesma húbris. No mito grego, os Titãs foram expulsos do Olimpo pela sua húbris — o pecado antigo daqueles que desafiam os limites, uma arrogância contra os deuses. Tanto o enorme navio de cruzeiro como o minúsculo submarino, como os seus nomes sugerem, foram impulsionados pela húbris e pereceram por causa dela. O Titanic proclamou-se ‘inafundável’, enquanto o criador do Titan afirmava que o seu submarino poderia explorar as profundezas mais extremas “em segurança, sem quebrar as regras”.
Embora ninguém tenha sobrevivido a bordo do Titan, o naufrágio do Titanic conta uma história diferente — uma de sobrevivência, fuga e classe. Enquanto o navio afundava, o capitão e os passageiros mais ricos apoderaram-se dos poucos botes salva-vidas e ordenaram à banda que continuasse a tocar música alegre no convés. A mesma húbris dos exemplos anteriores parece ser partilhada pelos superiates, bem como pelas crises induzidas do nosso tempo: disparidade legal e económica, segregação espacial e colapso ecológico. Se a consciência de um desastre iminente induz atos de egoísmo e fuga, a própria existência e proliferação destes colossais navios — ilhas mecânicas e móveis do novo milénio — revelam que tal comportamento já está em curso. A classe dominante continua largamente movida pela húbris: sustentada por uma riqueza imensa e uma fé utópica e cega no progresso, continua a dirigir o planeta rumo à distopia, a esboçar planos de fuga, exigindo que a banda toque melodias alegres para o naufrágio iminente.
Imagem de capa
Engraving by Ambrosius Holbein for the 1516 edition of Thomas More's Utopia
Tradução EN-PT
Marta Espiridião
- Guy Standing, The Blue Commons: Rescuing the Economy of the Sea (2021)