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Contemporânea

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    Mariana Caló & Francisco Queimadela, Mattia Denisse e Von Calhau!
    Carma Invertido

    Convento dos Capuchos, Almada
    Histórias Assímptotas de Três Cantos1

    Em tempos, reunia-se aqui uma comunidade votada às práticas espirituais e à vida contemplativa. Celebrava as criações do mundo com cânticos jubilosos, invocando o sol, a água, o fogo, o vento, as mais diversas criaturas e elementos orgânicos como irmãos e companheiros.2 Transformava o espaço murado em escola e os terrenos em redor em hortas e pomares, de onde admirava o mar a estender-se infinitamente... Agora, é outra a comunidade que habita estes lugares e os seus cânticos também são outros.

    Primeiro Canto3
    [ou o Canto do Pássaro]

    O que é que mudou?

    Não sei dizer. Vejo, ainda, o mar e a arriba abrupta cor de sangue de terra exposta à aridez de milénios, rarefeita imponente, a quem roubo pequenos galhos. Mas as árvores são esparsas e já não sinto o voo no corpo, porque o vento abandonou as minhas asas. Pensava que voava, porque continha em mim o sonho, quando, da boca gutural de um peixe-dragão, ouvi o gargalhar de outras notas sintéticas e um som metálico — qual pancada! pum! — profundo que no ar ecoava a rigidez do tempo. Nesse instante, pensei que o sonho me havia abandonado e, no meu primeiro ensaio, caí a pique.4

    Diz-se que aquele estranho ser de duas pernas erectas [coitado — tropeçou nelas, na sua, por si inventada, superioridade!], por não conhecer o voo no seu corpo, tentou imitar os pássaros, escapando-lhe da boca outras notas. Depressa a música desembaraçou os corpos da sua inércia, da materialidade da sua presença5, concedendo-lhes a sedutora ilusão de pertencerem a um mundo outro. O filósofo defendeu que seria necessário reintroduzir as cores na música — o que implicaria, necessariamente, estabelecer um sistema de correspondências entre sons e cores6— porque são as cores que fazem do corpo presença, ainda que por vezes etérea e fugidia. A nossa formulação poderia ser outra, relembrando a teoria das substâncias de um dos mais célebres membros internacionais daquela primeira comunidade,7 sendo a cor uma substância sem corpo, mas que apenas num corpo se consubstancia. A música não conhece as cores, mas sabe dizer os seus interstícios.

    Mais fácil foi, ao que parece, acreditar o inventor da imitação dos pássaros noutra analogia - entre o seu balbuciar rudimentar e o nosso canto alado. Talvez por isso lhe tenha ocorrido aquela ideia — que nem à água (a primeira a conhecer a linguagem no mundo8) lembraria — de que tudo se passaria na cabeça, algures entre a boca e os ouvidos, esquecendo o corpo. Necessitaria, apenas, de criar uma caixa de ressonância — como os nossos maravilhosos pulmões — para fazer entrar, de regresso pelos seus próprios ouvidos, os seus sons guturais em anagramas sem fim, entrelaçados. (In)satisfeito ainda, rejeitando o tempo — essa força invisível que parece consumir os seus corpos, impedindo-os de apreender a música e o voo num ciclo eterno — fez do badalo de um sino pendurado morto9 a sua cabeça.

    (Quando morremos, a audição é o último sentido a desaparecer)10


    Segundo Canto11
    [ou o Canto da Agua]

    O que subsiste na minha ausência?

    Nunca tive cor, mas atribuíram-me sempre gradações de azul ou de verde, tonalidades às quais conferiam uma qualidade evocativa ou evanescente. Na minha ausência, restam apenas ossos e fósseis mergulhados num lodo verde ácido que tudo corrói, inflamando o olhar.

    O olhar hipnótico só se torna possível no intervalo intangível entre a revelação e o desaparecimento. Os olhos esverdeados e ardentes da criatura mítica foram substituídos por discos ópticos pintados que, ao reflectirem-se na minha superfície, girando, girando, tornavam presente a presença fantasmática do seu corpo fugidio.

    As cores regressam ao pó primordial, tingindo tudo quanto tocam. Mas já não há tacto — apenas uma quietude mineral repousa no que subsiste: membros corniformes de um corpo ininteligível, imerso num tempo suspenso. As únicas formas que parecem persistir — por ainda guardarem, talvez, uma anima latente — apontam para vestígios dessa linguagem arcaica, partilhada comigo por plantas e animais: uma proto-linguagem da Terra animada, anterior à palavra. Mas, [q]uando vemos beleza na desolação, há algo que muda em nós. A desolação tenta colonizar-nos.13 Só a desolação (re)conhece a minha ausência.

    Num manto de lama ressequida, entre esqueletos de casas e fábricas, ramos podres e ruas que já não correm, fendam-se as minhas cicatrizes mais profundas. Contra a paisagem desolada, o corpo da criança desenha uma figura de pernas para o ar. As pernas parecem entrelaçar-se, ensaiando uma inversão complexa, descrevendo o fragmento de um círculo imaginário — como se, através da criança, passasse um sopro daquele ar que envolveu os que vieram antes14 dela, recriando-se num movimento tanto de fim como de começo. A ser assim, então existe um acordo secreto entre as gerações passadas e a presente. Então, foram esperados sobre esta Terra. Então, foi-lhes dada, como a todas as gerações que os antecederam, uma ténue força messiânica a que o passado tem direito. Não se pode rejeitar de animo leve esse direito.15Mas a criança aceita-o como a um jogo. Jogo entre fundo e figura - fundo que funde, fundo que se solta e solta o fio, desenha um círculo; o círculo solta-se e desenha outra figura ainda, incessantemente, e outra vez, de forma diferente. O mundo às avessas ignora esse movimento circular que põe em andamento o tempo para além do tempo que cada um espera para si. O meu movimento foi sempre fluido e eminentemente circular, mesmo quando fazem de mim espelho ou fundo translúcido de cor, concedendo-me uma superfície e uma profundidade puramente ilusórias e encantatórias, de onde emergem sombras negras - resquícios de outras formas de vida, de uma natureza ardente — que, ao se fixarem, quais sombras puras esvoaçantes, relembram a dança da criança ou a de Dionísio.


    Terceiro Canto16
    [ou o Canto do Vento]

    De que fogem, apressados?

    Do paraíso, sopro sempre intempestivamente. O filósofo chamou-me Progresso — força desmedida que tudo destrói e deixa em ruínas. Quando o poder divino interfere no mundo terreno, respira destruição. Por isso não existe neste mundo nada de permanente.17

    O Anjo18 fita ainda, hirto e imóvel, com as asas enrodilhadas nas minhas correntes, as catástrofes a acumularem-se diante dos seus olhos estupefactos. Bem gostaria ele de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas o meu sopro é tão forte que o anjo não consegue fechar as suas asas. Arrasto-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até ao céu.19

    O jardim murado do Paraíso20 foi um primeiro engodo — julgado, erradamente, como forma de conter as forças intempestivas e domesticar a Mãe-Natureza, quando, afinal, se pretendia preservar esta dos apetites vorazes dos humanos. Quando Príapo — filho de Dionísio e Afrodite, deus da fertilidade e da natureza, protector dos jardins e dos animais — surgiu de falo erecto e monumental, a submissão já se encontrava em curso.

    Mas o meu sopro, esse, nunca cessou — respiração de um tempo sem tempo, atravessando eras, corpos e mitos, sem direcção, sem destino (divirto-me criando redemoinhos). O jardim já não separa mais o bem e o mal, o mundo divino do mundo terreno, o futuro do passado, e a guardá-lo, duas figuras grotescas:21 de um lado, Gargântua; do outro, Pinóquio — ambos sob a efígie de Príapo, que lhes concedeu, à sua imagem e semelhança, esse importante atributo de domínio (ou será de sobrevivência?). Corpos desmesurados habitam o jardim das metamorfoses, onde a beleza e a graça dançam com os despojos do passado, enquanto ensaio outras direcções.

    Do paraíso sopro — e sopro ainda mais...

    Há já quem fuja, soçobrado, esquecendo que não há Anjo que lhes ampare o trambolhão.

    Susana Ventura
    Julho de 2025

    Vistas da exposição Carma Invertido, de Mariana Caló e Francisco Queimadela. Um projeto da Contemporânea no Convento dos Capuchos, Caparica. Curadoria de Susana Ventura. Fotos: Carbonara.st. Cortesia dos artistas e Contemporânea.

    Von Calhau!, A sina do sino pelo gargalo da gárgula, 2025. Vestígios da performance/concerto no Convento dos Capuchos, Caparica. Fotos: Carbonara.st. Cortesia dos artistas e Contemporânea.

    Mattia Denisse, Agora Ha Retiro Des-Cuidados, 2025. Pintura Mural no Convento dos Capuchos, Caparica. Fotos: Carbonara.st. Cortesia do artista e Contemporânea.

    Horário
    Terça a Sábado
    10h–13h / 14h–18h
    Encerra domingos, segundas e dias feriados

    Local
    Convento dos Capuchos
    Rua Lourenço Pires de Távora, 2825-041 Caparica, Almada

    Datas
    19.07 — 25.10.2025

    Organização
    Contemporânea

    Apoio
    DGARTES
    Câmara Municipal de Almada

    Carma Invertido
    Mariana Caló e Francisco Queimadela

    Artistas convidados
    Mattia Denisse e Von Calhau!

    Curadoria
    Susana Ventura

    Direção artística
    Celina Brás

    Produção Executiva
    Helena Mendoça

    Design
    Joana Machado

    Fotos
    Carbonara.st

    Tradução do texto PT-EN
    Susana Ventura

    Agradecimentos
    Alexandre Lemos, André Cepeda, António Baptista, António Cabanas, Sr. Belmiro, Sr. Cardoso, Dona São, Celina Brás, Cristina Grande, Sr. Eduardo, Filipa Oliveira, Francisca Bagulho, Helena Mendoça, Hélio Caló, Jaime Silvestre, João Alves, João Pais Filipe, Jolon, Jonathan Saldanha, José Augusto, José Vaz Bicho, Leonor Ventura, Lurdes Sá Lopes, Luzia Sousa, Manuel das Veigas, Manuel do Meimão, Margarida Alves, Maria Gabriela, Marta Baptista, Mattia Denisse, Nuno Aragão, Paulo Santos, Pedro Rocha, Pedro Sarmento, Ricardo Nicolau, Rui Castanho, Susana Ventura, Tó Zé da Quarta, Zarco Azevedo, Zé Maria

    Entrada
    Livre

    Folha de Sala
    Convento dos Capuchos / CMA

    Notas de Rodapé
    1. Os três Cantos correspondem a três Histórias Assímptotas, apropriando-nos desta ideia a partir de Mattia Denisse — "As histórias assimptotas, como as linhas, acontecem em paralelo e contaminam-se sem nunca se confundirem (Mattia Denisse e Arthur Dessine, Cata Log Cata Strofe. Lisboa: Dois Dias edições, Fundação Caixa Geral de Depósitos - Culturgest, p. 313) — para reinterpretar as obras dos diferentes artistas reunidos em Carma Invertido: a dupla Mariana Caló e Francisco Queimadela, a dupla Von Calhau!, e Mattia Denisse (que, por vezes, também convive com um seu duplo). Sem hierarquias e sem se confundirem, as suas obras percorrem caminhos paralelos, pertencendo, contudo, a um mesmo tempo e a um mesmo espaço de partilha. No infinito, não há promessa de encontro; mas nos corpos subsiste a possibilidade de uma inscrição colectiva — pequenas contracções, espasmos, memórias, ou paisagens melódicas. Neste texto, entre os três Cantos, irrompem imagens comuns, fragmentos de corpos e ressonâncias entre matérias de pensamento. Repetem-se, sim, mas sempre de modo diferente — talvez o eterno retorno seja, também ele, uma figura de carma invertido: nem um nem outro obedecem a uma direcção determinada, os tempos confundem-se — passado e futuro entrelaçam-se — e o sentido de potência — o Sim como afirmação da vida — mesmo em Nietzsche, nunca foi dado como garantido (mas, como hipótese, pertence a Dionísio).
    2. Característica distintiva da Ordem Franciscana, à qual pertence o Convento dos Capuchos da Costa da Caparica, fundado em 1558. São Francisco via os animais e as mais diversas criações naturais como irmãos e irmãs da humanidade, tal como celebra no seu poema "Cântico das Criaturas".
    3. O primeiro Canto propõe uma reinterpretação da obra dos Von Calhau! — A sina do sino pelo gargalo da gárgula — concebida para a Capela e o Claustro do Convento dos Capuchos, na Costa da Caparica, a partir de dois elementos emblemáticos do lugar: o sino e as gárgulas.
    4. Durante a visita ao Convento dos Capuchos, descobrimos que os rabirruivos-pretos fazem ninho nas gárgulas do claustro.
    5. Gilles Deleuze, Francis Bacon — Lógica da Sensação. Lisboa: Orfeu Negro, p. 107.
    6. Deleuze, Francis Bacon, p. 109.
    7. Falamos de João Duns Escoto, filósofo e teólogo franciscano.
    8. Partilhamos nesta passagem uma ideia de David Abram, que considera que a linguagem, para as comunidades tradicionalmente orais, não é uma característica exclusiva dos seres humanos, mas sim uma propriedade da terra animada, na qual os humanos participam (David Abram, Becoming Animal: An Earthly Cosmology. New York: Vintage Books. p. 11). Pressupomos, também, que na própria emergência da vida, a água tenha sido a primeira a conhecer a linguagem.
    9. Usualmente, o sino de igreja, suspenso numa torre ou campanário, encontra-se numa posição estática, dizendo-se estar "pendurado morto".
    10. Andreia C. Faria, Alegria para o fim do mundo. Porto: Porto Editora, 194
    11. O segundo Canto propõe uma releitura da instalação Carma Invertido, da dupla de artistas Mariana Caló e Francisco Queimadela, reunindo peças de distintas fases e media da sua produção, sob novas reconfigurações, face, também, a um corpo de obra recente, em intimo diálogo com os espaços do convento.
    12. Referimo-nos ao lince de Efeito Orla.
    13. Citação retirada do livro Aniquilação, de Jeff VanderMeer, utilizada pela dupla de artistas Mariana Caló e Francisco Queimadela na introdução à sua instalação Alfabeto Analfabeto.
    14. Walter Benjamin, O Anjo da História. Lisboa: Assírio & Alvim, p. 10.
    15. Idem, Ibidem. Houve, no entanto, uma sujeição da citação á voz de enunciação do presente Canto.
    16. O último Canto tem origem na intervenção mural do artista francês Mattia Denisse intitulada Agora Ha Retiro Des-Cuidados, que, numa primeira visita ao espaço, leu Des-cuidados em vez de Decuidados. frase que encima o portal de acesso ao jardim sobrelevado. Durante a Depressão Martinho (Março de 2025), parte deste ficou destruído.
    17. Benjamin, O Anjo da História, p. 29.
    18. Referimo-nos à passagem célebre de Walter Benjamin que tem como alegoría a pintura Angelus Novus, de Paul Klee. Vide Benjamin. O Anjo da História, p. 14.
    19. Benjamin, O Anjo da História, p. 14.
    20. Etimologicamente, paraíso deriva do persa antigo pairidaeza, que significava "recinto ou jardim murado", tendo sido apropriado pela língua grega como parádeisos, termo utilizado para designar o Jardim do Éden nas traduções gregas do Antigo Testamento.
    21. "Os grotescos eram, sobretudo, pintura ornamental. São o lugar das transformações. das metamorfoses, dos híbridos. São o lugar onde a vida diurna se mistura com o mundo nocturno, a vida real com a vida onírica. Onde se desfazem subtilmente os limites que separam o orgânico e o mineral, o onírico e a realidade. No Renascimento, em volta das cenas bíblicas que ocupam os quadros centrais e monumentais, os grotescos invadem e apoderam-se, como a vegetação rasteira, das margens. São o lugar discreto, mas subversivo, onde sobrevive o paganismo," Mattia Denisse e Arthur Dessine, Cata Log Cata Strofe, p. 308.