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    por Paula Ferreira

    Editorial

    por Paula Ferreira

    A luz da razão, vindo dissipar as trevas da superstição e seus terrores imaginários, e a ciência, vindo diminuir a impotência dos humanos em face dos perigos reais do mundo, iriam finalmente nos fazer aceder a um estado de sereno destemor, um estado de segurança e de conhecimento. Nada temeremos, porque tudo compreenderemos; e o que se puder prevenir, preveniremos.1

    O medo pode parecer um sentimento contraproducente para iniciar um projeto que pretende perspectivar futuros. No entanto, todos os caminhos percorridos para começar esta escrita levaram de volta ao texto de Eduardo Viveiros de Castro, em que o medo (a sua concepção ou as suas origens) prefigura(m) um retorno ao perspectivismo cosmológico ameríndio2. Esse sentimento, profundamente entranhado na experiência humana, seria a antítese da razão, de acordo com a crença daqueles a quem o autor denomina “nossos ancestrais imediatos”, os modernos. O sereno destemor, anunciado em suas palavras, viria como consequência de uma cultura tecnológica, guiada pelo conhecimento — nada temer por tudo compreender é, talvez, uma das falácias históricas mais bem assentadas em nosso imaginário. Porém, como já anuncia Viveiros de Castro, a Razão “ao se disseminar, aumentou brutalmente as razões para se ter medo” e, continua, “se tornou ela mesma aquilo que se deve temer”3. A confiança moderna no Progresso, imbuída de seus sistemas de crença tecnocratas e monoculturais, pode ser responsabilizada por, frustrando as próprias expectativas, ter forjado um mundo que se aproxima da incondicionalidade de abrigar a vida tal qual a conhecemos. 

    Tal mundo é aquele em que, conforme as geleiras do Ártico cedem ao aumento da temperatura terrestre, legitimam-se interesses imperialistas e desejos de expansão militar, em vez de surgirem alternativas políticas ao modelo de desenvolvimento capitalista. Em que a mesma perda de massa polar sobre a crosta terrestre não ressoa como um alerta da proximidade do fim — ou pelo menos, de algum fim —, mas gera interesses econômicos em projetos extrativistas e novas rotas marítimas para o comércio. Um mundo em que a crise climática é formalmente discutida em uma linguagem que fortalece o apelo neoliberal pela individualização das responsabilidades e ofusca as estruturas de poder que fomentam sistemas predatórios. Em que, da Groenlândia (antecipando a repetição das Ilhas Virgens Americanas4) ao Canal de Suez, os projetos coloniais se reciclam, multiplicando a lógica da domesticação humana e, quando necessário, implicando que qualquer um que atrapalhe seja excluído ou exterminado5. É um mundo sem passado, que parece fadado a repetir os seus próprios erros ad aeternum.

    Nesses diversos sentidos, como possivelmente em inúmeros outros, esse mundo transformou o presente em uma espécie de ressaca da modernidade. Tecnocrata, monocultural, supremacista e hegemônica, legou-nos um estado em que tudo tememos, porque (aparentemente) nada compreendemos. Não compreendemos a nós próprios, aquilo a que chamamos “natureza” e nem aos “outros”. A alteridade é outra vez uma ameaça, tão assustadora quanto fora durante o ápice das teses do racismo pseudocientífico, e justifica o apelo sentimental dos fascismos emergentes. Diante do enigma da esfinge, seremos uma sociedade com medo de si mesma, fadada a aniquilar as suas próprias condições de existência6, ou aprenderemos, finalmente, que o medo pode não ser uma repulsa, mas um desejo, um prenúncio da necessária aprendizagem do devir-outro7?

    Se compreendermos a alteridade enquanto uma construção reforçada ao longo da história, é possível perceber que a mesma tem sido um princípio que “comodifica” tanto o mais-que-humano quanto o humano — ou melhor, certas identidades específicas do humano, como o migrante, a mulher, o racializado, dentre outros que, por vezes, não parecem sequer pertencer à categoria partilhada da humanidade. A alteridade enquanto dispositivo ideológico transforma o mundo, e, consequentemente, os múltiplos “outros” que o habitam. Humanos e mais-que-humanos passam a ser compreendidos como ontologicamente separados; natureza e cultura se dividem em uma relação hierárquica que justifica uma tese positivista de desenvolvimento extrativista; cada espécie passa a cumprir um papel rigidamente delineado dentro de uma cadeia alimentar nociva. Em um sistema a que tudo subjuga, deixamos de nos compreender enquanto partes interdependentes de um todo. 

    Dentre os flagrantes exemplos dessa tese, está o fenômeno relativamente recente a que o geógrafo Jamie Linton nomeou “água moderna”, como relembra a teórica cultural Astrida Neimanis, em Bodies of Water. No livro, a autora esclarece as relações entre a crise hídrica contemporânea e tal fenômeno, que permite que a água seja concebida enquanto abstraída dos corpos e dos ambientes, à parte de suas relações sociais e ecológicas8. A “água moderna” se refere a uma abstração, a uma desterritorialização que, ao repetir-se ideologicamente, torna possível que se normalize uma visão que a toma enquanto mero recurso — daí podermos apropriá-la livremente, uma vez que as geleiras glaciais finalmente se liquidificarem a ponto de abrir novas rotas comerciais nos oceanos. 

    Contrariar as perspectivas que tendem a tudo “comodificar”, colonizar e subjugar, transformando cada integrante do cosmo em recurso capitalizável, talvez seja uma das maneiras de travar a marcha que, desenfreada, nos tem guiado a um tempo sem futuro — em que o medo se torna uma reação intrínseca à experiência humana. Porém, seguir em contracorrente exige o esforço de tentarmos ouvir e compreender as vozes dissidentes do discurso hegemônico. Procuramos, então, o refúgio latente nas visões cosmológicas ameríndias, de que hoje há um vasto registro, nas teorias anticoloniais e ecofeministas. Recorremos aos seus legados, bem como à sua produção contemporânea, ainda que a investigação de seus princípios nos traga mais dúvidas do que certezas — relembrando, assim, a fundamental função das perguntas em um processo de libertação9.

    É nesse encontro de perspectivas radicalmente imaginativas que a edição Escritas Oceânicas se insere. Encontrando na atividade editorial uma maneira de semear e fomentar a circulação de ideias, o projeto pretende reunir práticas artísticas e críticas que, informadas ou sensíveis às correntes de pensamentos referidas, ensaiam mundos alternativos, projetam dissidências e perspectivam futuros — ainda que permaneçam cientes dos limites de agência sobre a realidade concreta. Ora inconscientemente, ora ativamente, são práticas que vivem abordagens fundamentalmente dialógicas; que tornam porosas as fronteiras do humano; que são assentes no encontro e na troca; que criam a partir da coletividade; ou que propõem a fluidez como método. Através do cruzamento de disciplinas e da ideia de correspondência, Escritas Oceânicas convoca a água como metáfora, e o Atlântico como território simbólico; evocando os múltiplos “outros” que constituem o nosso cosmo e afirmando um espaço de convergências que constata a nossa fundamental dependência interespecífica.

    Nesse caminho, Escritas Oceânicas se inicia com a tradução da conversa Soberanias, Ativismos e Espiritualidades Audiovisuais, entre os cineastas Olowaili Green, David Hernández Palmar, Laura Huertas Millán, Nelly Kuiru, Pablo Mora, Mileidy Orozco Domicó e Amado Villafaña. Originalmente transcrita a partir de uma conversa realizada online, em 2022, traduzimos para o Português a sua primeira parte, tencionando ampliar ainda mais o alcance desse rico testemunho sobre a produção cinematográfica indígena da Colômbia. A escolha por ser este o ponto de partida reflete o entendimento dessa conversa enquanto uma espécie de antecipação das diferentes preocupações expressas no pensamento editorial do projeto: a contestação da narrativa histórica ocidental, que concede à Europa uma função “civilizatória”; a tecnologia audiovisual como prática presente nos territórios ameríndios antes das colonizações; a espiritualidade inerente às práticas artísticas; a porosidade do humano nas suas relações interespecíficas; dentre outras questões que nascem dessa rica troca entre as diferentes perspectivas dos cineastas.

    Cada conteúdo comissionado para esta edição se verifica igualmente assente na ideia da conversa e da troca como método. Nas entrevistas, são diferentes os territórios perscrutados: a escritora e investigadora Maria Kruglyak esteve com o poeta e artista visual Juliankxx, cujo trabalho audiovisual parte de suas próprias biografia e experiência enquanto parte da diáspora africana, encontrando em outras vivências diaspóricas maneiras de construir narrativas que questionam noções de identidade e pertença, muitas vezes em cruzamentos (literais ou metafóricos) através do Atlântico; enquanto editora, Paula Ferreira escreve a partir de um encontro com a ativista e crítica cultural Kitty Furtado, cuja investigação tem contribuído para a discussão sobre o racismo, a memória e as reparações dentro da produção e da teoria cinematográficas, abordando também as obras fílmicas que datam dos processos de libertação das antigas colônias como maneira de demonstrar o poder da imagem em movimento como ferramenta de resistência nas lutas por independência; os curadores João Mourão e Luís Silva participam nesta edição com uma entrevista à artista Minia Biabiany, evocando o território caribenho presente em seu trabalho, bem como as relações entre a história colonial das ilhas, a linguagem e a narrativa; a curadora e escritora Ana Sophie Salazar compõe uma troca com a artista Beatriz Santiago Muñoz a partir da sua obra audiovisual, que desafia e suspende as fronteiras entre realidade e ficção, explorando noções de identidade, da cultura popular e da história de territórios do sul global.

    A ideia de correspondência é aprofundada a partir dos ensaios textuais comissionados nesta edição. Na escrita de Djaimilia Pereira de Almeida, autora de, entre outros títulos, As Telefones e Luanda, Lisboa, Paraíso — livros em que o Atlântico serve de pano de fundo para vidas que se marcam pelo cruzamento desse espaço oceânico —, e que, no presente projeto, participa com a criação de uma peça literária inédita. E no desenvolvimento, pelo investigador e curador Mattia Tosti, de um ensaio em que é conjecturada uma cartografia dos processos políticos que envolvem o oceano Atlântico. É também na troca que assentam os ensaios audiovisuais apresentados: nas interações entre humano e não-humano propostas pelo trabalho da artista Vica Pacheco, que explora as tecnologias e mitologias pré-hispânicas no âmbito da música experimental; e na fluidez disciplinar das investigações visuais e sonoras da artista Adriana João. 

    Escritas Oceânicas também inaugura uma expansão além da esfera digital, a partir da publicação de um livro de artista, que coloca em diálogo os trabalhos dos artistas Joana da Conceição e Tiago Baptista. O livro encontra no apelo experimental do design de Sílvia Prudêncio uma maneira de investigar tridimensionalmente os universos pictóricos dos artistas, criando relações discursivas. Nele, figuras que parecem habitar o fundo de oceanos fictícios, propondo a invenção de uma natureza híbrida, interagem com as ruínas de um tempo passado-presente-futuro, expresso na simbiótica sobreposição de fragmentos orgânicos e geométricos de uma humanidade em contato com o cosmo. A aproximação de vocabulários de artistas cujas obras exploram linguagens dissemelhantes acontece, ao longo das páginas, por meio de uma prática que está atentamente voltada ao encontro com o(s) outro(s).

    São, enfim, numerosos os atravessamentos que o projeto propõe entre diferentes campos da arte contemporânea e a produção crítica e teórica. Depositando na liberdade criativa de cada autor e artista uma maneira de compor especulações e narrativas, atravessamos o Atlântico enquanto território simbólico.

    —Paula Ferreira, editora executiva Escritas Oceânicas

    Paula Ferreira é escritora, fotógrafa e pesquisadora independente. Nascida em São Paulo, atualmente vive em Lisboa. É pós-graduada em Fotografia pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e em Estética pela FCSH NOVA. É fundadora de Aos Cuidados, projeto que abrange publicações impressas, exposições e workshops dentro de temáticas relacionadas ao acesso à saúde e aos direitos aos cuidados, sempre por uma perspectiva feminista, interseccional e transdisciplinar. Em 2023, realizou a curadoria da exposição Bandeira Branca, na Galeria Irmã Feia, e o ciclo de cinema Escrever a Liberdade, no Museu do Aljube. Foi assistente curadora na Anozero: Bienal de Coimbra, edição de 2024.

    Este texto foi escrito em português do Brasil.

    Notas de Rodapé
    1. CASTRO, Eduardo Viveiros de. O medo dos outros. Revista de Antropologia, São Paulo, Brasil, 2012.
    2. Ibid.
    3. Ibid.
    4. Ver: Shelley Moorhead.
    5. BANDERA, Mauro Dela. O que as plantas nos ensinam sobre política?. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, edição especial Vegetalidades, p. 2-11, set. 2023.
    6. Ibid.
    7. Ibid.
    8. NEIMANIS, Astrida. Bodies of Water: Posthuman Feminist Phenomenology. Bloomsbury Publishing Plc, 2017.
    9. Ver: Paulo Freire. Pedagogia do Oprimido. Editora Paz & Terra, 2022.