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    Uma conversa com Minia Biabiany

    João Mourão e Luís Silva

    por João Mourão e Luís Silva

    Sustentada pela água

    Uma conversa com Minia Biabiany sobre Escuta, Memória e as Políticas da Presença

    João Mourão e Luís Silva: Minia, muito obrigado pelo tempo que disponibilizaste para conversar connosco. É especialmente significativo que possamos continuar, através deste diálogo, a rica e generosa visita de estúdio que fizemos em Guadalupe. A tua prática artística parte muitas vezes das complexas camadas da história colonial, da linguagem e das experiências sensoriais do lugar, utilizando vídeo, instalação e narrativas espaciais para refletir sobre memória corporificada e deslocamento. Nascida e estabelecida em Guadalupe, a tua prática navega entre formas de reparação, tanto pessoais como coletivas. Numa região historicamente moldada pela violência do tráfico esclavagista transatlântico, a extração ecológica e o rasuramento linguístico, o oceano não é apenas uma presença geográfica, mas um recetáculo de trauma, resistência e renovação. No âmbito da edição Escritas Oceânicas, que considera o Atlântico como uma entidade viva e um lugar onde se entrelaçam histórias ecológicas, políticas e culturais, como crês que o teu trabalho responde, ou dialoga com as materialidades estratificadas do oceano e as suas agências mais-que-humanas?

    Minia Biabiany: Desde que regressei a Guadalupe, o meu trabalho tem-se focado em contar histórias deste território específico, e nas suas formas de falar através de vozes e silêncios. Reconectou-se com o oceano durante a procura pelas raízes do conhecimento, para o vídeo Toli Toli, entendendo o mar como um dos lugares a que chamamos casa. Devido ao contexto político da Guadalupe — sendo uma ilha caribenha-francesa, onde as decisões que a afetam são tomadas de longe, sem qualquer consideração pelas suas necessidades específicas, identidade, ou sistemas intrincados de interação entre seres humanos e não-humanos —, prevalece uma sensação de distância ou desconexão do lugar que habitamos, e de valorização do conhecimento experiencial que o mesmo contém.

    Enquanto procurava por um padrão de tecelagem que pudesse corporificar e carregar a narrativa da terra, decidi trabalhar a partir das tradicionais armadilhas para peixes — conhecidas como nasses, em francês — e ressignificá-las como voz ou um discurso do território. As formas das nasses são constritas pelos seus próprios padrões, e por isso comecei a desenhar outras formas que se distanciassem destes objetos fechados. Transformaram-se em superfícies tecidas, numa história. No vídeo The Length of My Gaze at Night, a questão nuclear que continuamente orbitei — como o espaço à minha volta molda o meu pensamento, e por sua vez, como os meus pensamentos moldam os espaços e lugares do território — clarificou-se quando encontrei uma citação de Aimé Césaire que lia: “o mar tem sabor de ancestrais”1. Escolhi trabalhar à superfície desta questão — não no sentido do superficial, mas de habitar um espaço de dualidade, simultaneamente dentro e fora, observando o que o mar tem para me ensinar. As agências mais-que-humanas com que me tenho sintonizado agora guiam também o próximo vídeo em que estou a trabalhar.

    O livro Undrowned, de Alexis Pauline Gumbs, tem sido um companheiro inestimável, pelo quanto me tem ajudado a aprofundar a minha escuta e a criar novas ferramentas. Em paralelo, as metodologias de práticas narrativas desenvolvidas pelo coletivo mexicano Colectivo de Prácticas Narrativas — enraizadas em perspetivas feministas, políticas e ecológicas — trouxeram o foco para o Oceano Atlântico e o Mar das Caraíbas como espaços centrais à exploração de questões de responsabilidade, história, e da minha relação com a linhagem, tanto pedagógica quanto coletivamente.

    JM+ LS: Descreves o regresso ao mar como lugar tanto de memória  como de pedagogia — onde formas como a nasse carregam o discurso do território, e onde agências mais-que-humanas, como a água ou o cachalote, orientam a tua escuta. No novo vídeo em que estás a trabalhar, esta escuta relacional parece trazer novas ferramentas narrativas e espaciais — moldadas pelo conhecimento experiencial, enredamento ecológico, e práticas feministas da atenção. Poderias partilhar como este processo se tem vindo a desenrolar? Como é que estes encontros com o mar, a nasse, e as presenças não-humanas têm dado forma à linguagem visual e concetual do trabalho? E de que maneira pensadoras como Alexis Pauline Gumbs, ou o teu contato com o Colectivo de Prácticas Narrativas, têm influenciado a forma como pensas o ato de contar histórias, a reparação, e as responsabilidades do fazer na relação com o lugar e a história?

    MB: O meu processo criativo desdobra-se simultaneamente em dois ou três ciclos. Como referi anteriormente, o meu foco está no que é dado ou retirado quando a informação — ou a frequência — passa de um espaço interior para um espaço exterior. E, por informação, quero dizer a relação que ocorre entre dois ou mais atores, humanos ou não-humanos, visíveis ou invisíveis, dentro do nosso mundo fenomenológico. A prática da escuta é um ato de atenção guiado pelo desejo de entender uma outra história. Quando ouço a forma como o meu pensamento é moldado pelo que me rodeia, posso entender melhor tanto o lugar como a mim mesma — e vice-versa. Este é o primeiro ciclo, mais longo: um processo contínuo e sem fim. O segundo ciclo, mais curto, inicia-se quando se torna necessário determinar a forma final de um vídeo ou instalação. Nesta fase, defino o seu movimento — onde começa e onde termina.

    Por exemplo, durante o processo de edição de um vídeo, a ação de tecer guia-me na criação de um pulso — uma aproximação entre cores, imagens, sons, palavras escritas e faladas, inférteis e fechadas até ao momento do seu encontro. Observo padrões e invento histórias que se atam e desatam num certo ritmo, gradualmente revelando a direção que procuro para o trabalho e suas múltiplas narrativas. Estas histórias movem-se em círculos, não seguem uma linha reta. A linguagem visual da obra funciona pela sobreposição das várias camadas que compõem estes encontros. Ou seja, dentro desta linguagem visual, as palavras tornam-se fios que se transformam em cerâmica ou madeira queimada — materiais que preservam a complexidade das nossas histórias. A hierarquia que estabeleci para organizar e priorizar o que o público experiencia numa instalação — com o propósito de construir uma narrativa — é profundamente pessoal. É a minha própria forma de compreender as suas várias camadas.

    Para o vídeo que estou a criar, por ocasião do Prémio Imagem em Movimento Han Nefkens, parti dos métodos de questionamento terapêutico das Práticas Narrativas —  mais especificamente, das lentes feministas, políticas e decoloniais desenvolvidas pelo grupo mexicano Colectivo de Prácticas Narrativas. Este enquadramento é essencial, pois as histórias estão em todo o lado, sempre. Michaël White, terapeuta que desenvolveu estes métodos de escuta e questionamento, criou algo a que chamou de mapas — linhas orientadoras que ajudam quem ouve a levantar questões que melhor permitam quem fala a desdobrar e articular elementos, emoções ou decisões que anteriormente não tenham sido consideradas significantes para a história. Sou profundamente fascinada pelo espaço, e por quão fluido e mutável pode ser.

    Graças a uma série de entrevistas focadas nas relações das pessoas com o mar — utilizando ferramentas partilhadas de escuta, e centrando as suas perspetivas sobre a gravíssima contaminação de clordecona2 que a Guadalupe continua a sofrer, resultante de práticas coloniais ainda em curso — estamos agora na fase de recolha de materiais. Convidei algumas familiares, com quem tenho conversado sobre estas questões, para coletivamente pensarmos o vídeo. As entrevistas não são ferramentas apenas para mim, mas para todas nós. Caso contrário, o projeto arrisca-se a ser apenas mais uma forma de extrativismo — recorrendo às experiências e crenças de outras, sem reciprocidade.

    Uma das questões que tenho vindo a explorar — e que surgiu apenas depois de uma atenta escuta das histórias individuais à volta do mar, da terra, e das pessoas que me rodeiam — é uma tentativa de colocar a pergunta: O que diria o mar sobre a contaminação que tem sofrido? Claro que é uma projeção humana numa entidade não-humana, apenas uma maneira possível de escutar. No entanto, abre espaço para imaginar, compreender, ou até projetar a perspetiva do mar — um ato de empatia e pensamento relacional. Sou ainda principiante nas Práticas Narrativas e na aprendizagem de guiar outros (e a mim mesma) na direção da auto-compreensão e libertação de trauma pela articulação de histórias pessoais, numa partilha acionada por perguntas intencionais. Um terceiro ciclo do meu processo poderia ser o meu próprio sistema de esquecimento — ou melhor, o meu interesse nas formas como decidimos, consciente ou inconscientemente, o que reter ou descartar das nossas histórias pessoais.

    JM + LS: Falaste do mar de forma tão bonita, simultaneamente como testemunha e participante nas histórias que se desdobram a partir da Guadalupe — histórias marcadas pela memória ancestral, por legados coloniais ainda vigentes, e por danos ecológicos como a contaminação por clordecona. O teu envolvimento com as Práticas Narrativas, e o teu desejo de co-criar e não apenas extrair conhecimento, ecoam esta ética da escuta e da autoria partilhada. Nas tuas conversas recentes com o arqueólogo francês Benoît Bérard, o mar reemerge não só como conduto entre ilhas, mas como território central das formas de vida indígenas dos Kalinago3.

    Neste contexto, queríamos indagar de que forma o conceito de Relação de Édouard Glissant — com a sua procura por opacidade, interdependência e pensamento arquipelágico — ressoa com estas tuas reflexões. Como é que os diálogos estabelecidos, quer com académicos, parentes ou o próprio mar, informam uma compreensão sempre crescente do oceano como espaço de constelação, resistência e histórias entrelaçadas? E como é que estas constelações relacionais — tanto literais como metafóricas — poderão informar os teus próximos passos?

    MB: Os conceitos de opacidade e pensamento arquipelágico têm vindo a alimentar o meu trabalho — começando na escola artística, e ao longo dos últimos anos. Quando compreendi que a necessidade de conectar com estes conceitos é mais do que intelectual, e que deve atravessar a sabedoria corporal e emocional, juntei-me com Madeline Jimenez, da República Dominicana, e Ulrik Lopes, de Porto Rico. Juntas, criámos um seminário coletivo alternativo chamado Semillero Caribe (2016), albergado pelo espaço Cráter Invertido, na Cidade do México, onde vivíamos na altura. Imaginámos uma série de sessões enraizadas na aprendizagem experiencial — partindo das nossas diversas interpretações de pensadores caribenhos que não exclusivamente Glissant.  Trabalhávamos com um grupo heterogéneo de participantes, em sessões que duravam entre três a quatro horas. Produzimos quatro pequenas publicações para acompanhar a nossa driv — palavra crioula para um caminho sinuoso mas intuitivo — a partir de conceitos como corpo, mente, teoria, respiração, emoção, memória e trauma. Isto tomou forma no contexto da Cidade do México, na altura marcada por uma pulsão renovada para a movimentação de coletivos e uma crescente influência de pensamento feminista e decolonial. E numa altura em que académicas como Catherine Walsh ou Yolanda Wood, e artistas e pensadores como Lena Blou, Paul B. Preciado ou Elsa Dorlin, tinham finalmente começado a ganhar maior reconhecimento no discurso artístico.

    No início deste ano fizemos outra sessão do Semillero Caribe, desta vez com os alunos de Belas-Artes de Cergy, a convite do projeto curatorial Persona Curada. Desenhar exercícios e experiências à volta do conceito de opacidade — e pô-lo em prática como ferramenta pedagógica — foi fulcral para aprofundarmos coletivamente a compreensão do silêncio e da voz da terra, em particular depois do meu retorno à Guadalupe. Propusemos mergulhar numa densidade de sensação e reflexão, abraçando a riqueza do caos como forma de preservar a complexidade da nossa enunciação — como Caribenhas, no plural. O conceito de Relação está entretecido em toda a minha prática; habita os meus trabalhos espaciais como uma proposição narrativa, de múltiplos canais, dentro das instalações.

    O que Glissant chama de direito à opacidade continua a ser um dos seus mais generosos presentes para a artista que sou. Permite-me a possibilidade de navegar as minhas águas sem necessitar de conhecer profundamente — ou ser conhecida por — todas as pessoas que nadam ao meu lado. Estou num processo contínuo de aprender a co-criar, e de desaprender mecanismos extrativos. A clareza necessária para articular intenções e antecipar possíveis consequências de estar (ou ser) em relação  de escutar com o objetivo de produzir a partir de uma autoria partilhada — demanda uma atenção profunda. Envolve reflexão pessoal constante, meta-consciencialização, e uma forma de sinceridade que pode também expor feridas ou traumas passados. É um movimento coletivo que começa com compromisso íntimo — uma decisão tomada não uma, mas milhares de vezes, para que se opere uma mudança.

    JM + LS: A tua reflexão sobre a prática da opacidade oferece-nos uma visão poderosa da pedagogia enraizada na sensação, na recusa e na complexidade relacional. Falas de “uma densidade de sensações e reflexões”, e da importância de navegar as suas próprias águas, nem sempre sabendo quem partilha a corrente. A par do desdobramento da tua prática, como pensas o espaço da instalação, ou da imagem em movimento, como lugar para este tipo de experiência partilhada mas não-extrativa? Como convidas, ou abres espaço aos visitantes — humanos e mais-que-humanos — para engajarem com a riqueza do que é sentido, mas não totalmente revelado?

    MB: A poeticalidade — ou potência do poético — oferece uma forma de relação e compreensão através da sensibilidade. Como escreveu Alexis Pauline Gumbs, “respirar é uma prática de presença”4. Gostaria de estender as suas palavras e dizer: uma instalação, ou um vídeo, é uma prática de presença. E numa época em que a nossa atenção se distende constantemente entre ecrãs e algoritmos, a presença permanece tão política como sempre foi. Estar presente pode ser transformador. Reconecta-nos com a emoção, com a intenção. Abre caminho ao poético — não como ornamento, mas como uma força que nos permite relacionar com o que diretamente impactamos, estabelecer relações nos nossos próprios termos. É uma possibilidade de escuta. Falo de potência, e não de poder — não no sentido da dominância, mas no sentido da possibilidade. Quando uma história é contada, cada pessoa ouvirá de maneira diferente. É essa diferença que torna a escuta tão vital.

    Quando o espaço demanda atenção, ele convida à presença. Eu sou — e vivo — numa ilha governada à distância de 6000 km. Observar, próxima e conscientemente, os trabalhos subtis de assimilação, e as formas silenciosas de resistência que estes encontram, impele-me a aprofundar a minha presença. Ao estar presente onde estou, talvez consiga começar a desvendar de que formas fui, ou estou a ser, programada e colonizada. E, para mim, há uma ligação entre a consciencialização e as poéticas da imaginação — como um processo de resistência. É a confiança no próprio processo. Neste espírito, componho, organizo e proponho instalações ou vídeos enquanto espaços estratificados de narrativas enredadas — espaços onde histórias podem ecoar, individual e coletivamente.

    O ser humano não resiste a um convite para estruturar narrativas — é a forma como nos relacionamos. Ao invocar corpos e sentidos, alteramos a frequência. O ato de contar histórias, quando parte de uma lente poética, não precisa do enquadramento de uma exposição para existir. Quando crio o que chamo coreografias para os olhares — olhares no plural, pois refiro-me a mais do que apenas a visão — o meu cuidado está em oferecer e deixar espaço. Espaço vazio. Como as pausas no ritmo da respiração.

    Para me envolver com o mais-que-humano, e após anos a trabalhar sozinha, tenho sentido necessidade de convocar o coletivo. Para o vídeo Our Listening (título provisório), criado para o Prémio Han Nefkens, convidei familiares próximas para colaborar no fazer de um trabalho coletivo. O maior desafio para mim, até agora, é aprender a abandonar a necessidade de controlo sobre o resultado final. Quando convido outras para ver e sentir, faço-o guiada por uma sensação de que o trabalho é suficientemente generoso — equilibrado na profundidade do seu questionamento — e que quem o recebe poderá ligar-se a ele.

    O que é uma ferramenta de aprendizagem? Pode ser qualquer coisa que escolhamos, que crie espaço tanto para a compreensão pessoal quanto para o conhecimento coletivo ou ancestral. Podemos falar de frequências, espiritualidade, ou da potência e poder da imaginação. Na minha pesquisa sobre água e escuta, revisitei as experiências fascinantes de Masaru Emoto em redor da capacidade da água para reter emoções e intenções. George Lamming definiu a soberania da imaginação como “a livre definição e articulação do eu coletivo, independentemente do rigor das restrições exteriores”5. Como artistas, as nossas ferramentas primárias são a intenção e a atenção.

    JM + LS: A tua descrição da instalação e do vídeo como práticas de presença — e da presença em si como um ato político e poético — toca profundamente nas formas como a intenção, a imaginação e a atenção podem moldar a compreensão coletiva. Nesta nova fase do teu trabalho, em que convidas familiares para o processo do fazer, deparas-te com a dificuldade em afastar o impulso do controlo, em confiar que o partilhado é generoso e equilibrado na medida certa para ser recebido. Como navegas este deslocamento na direção da colaboração, em especial com pessoas tão próximas? Será que este ato de fazer-junto carrega uma dimensão espiritual para ti — algo ligado à cura, linhagem, ou escuta partilhada para além das palavras? E como é que abres espaço, tanto para ti como para outras, no desenrolar deste processo de cocriação?

    MB: Primeiro precisei de clarificar as minhas próprias intenções. Os nossos filtros internos de julgamento podem proteger-nos ao fechar-nos à compreensão ou, inversamente, abrir-nos a novas ideias. Célia é professora de design; Chloé, de oito anos, ama o mar; Nouma trabalha como educadora em permacultura; Murielle é fitoquímica e professora; e eu moldo o meu questionamento enquanto artista. Todas as adultas deste grupo cresceram aqui, partiram, e decidiram regressar para se estabelecer em Guadalupe. Por vivermos com cortes de água constantes, causados por décadas de corrupção, estamos profundamente preocupadas com a água — a sua contaminação por plásticos e clordecona, e as vidas e vozes mais-que-humanas que a ela estão ligadas. A nossa preocupação partilhada é com abrir espaço, e mantê-lo aberto. Como mãe, uma perspetiva intergeracional sobre a água na nossa experiência guadalupense tem vindo crescentemente a informar as minhas reflexões sobre como pensamos culturalmente os corpos aquáticos. O meu convite ao grupo está sintonizado com os nossos ritmos e realidades, embora enquadrado pelos prazos da arte contemporânea. Uma das propostas-chave é que se escute em conjunto, repetidamente, enquanto se pratica uma outra escuta, individual e profunda, ao longo de todo o processo. As responsabilidades não estão repartidas de forma igualitária, mas cada passo é guiado, tanto quanto possível, por comunicação horizontal e tomada de decisões partilhadas.

    Estamos a experimentar com a escuta — de lugares, presenças mais-que-humanas, memórias íntimas, reações à água, e pensamento coletivo — antes de passar à escrita e filmagem. Em paralelo, estou a realizar entrevistas e a legendar vídeos. O processo é complexo e síncrono. Continuo a assumir a responsabilidade de liderar o grupo, no sentido de assegurar a coerência da narrativa na recolha das opiniões e emoções de cada membro durante a edição do vídeo. Não me entrevistarei a mim própria. O primeiro espaço que criámos em conjunto foi para definir os papéis que cada uma assumiria dentro do grupo, os cronogramas e as expetativas mútuas — um passo importante para evadir qualquer forma de extrativismo. Conhecemo-nos há muitos anos, e este espaço partilhado conecta-nos pelas novas perspetivas individuais enquanto nos permite, pela primeira vez, trabalhar juntas enquanto coletivo. Isto significa também que a nossa forma de organização não é nuclear, mas sim tentacular. Como algumas de nós não se consideram artistas na relação com as suas realidades, acaba por se tornar um espaço de aprendizagem — construído com vulnerabilidade e confiança, suportado pelas entrevistas que conduzi utilizando as práticas narrativas.

    Nas práticas narrativas, documentar alguém a contar a sua história é uma ferramenta partilhada — não só para preservar a formulação frásica exata, mas também para manter aberto um espaço de experimentação constante através da repetição contínua. Este ato cria camadas de escuta ao longo do tempo, e pode tomar muitas formas. Quando reflito sobre a prática de criar e manter esse espaço, duas imagens vêm à mente. A primeira é o nosso barco — um espaço flutuante que se move, pausa, e encontra a sua direção; guiado por, mas resiliente à inconstância dos ventos das emoções, tanto alegres como conflituosas. A segunda é estar na água, olhar o céu acima, confiar que o espaço à nossa volta nos segura e suporta.

    Voltando à vossa questão, a partilha além das palavras é a tecelagem dos nossos desejos. A possibilidade da cura está sempre presente, pelo menos enquanto a população guadalupense — seja Afro-Indígena, Indo-Caribenha ou branca — continuar a carregar traumas profundos, com raízes no sistema de plantações. A epigenética revelou o quanto os padrões comportamentais afetam não só indivíduos, mas famílias inteiras e sistemas sociais. Quero abrir espaço para examinar estes mecanismos — no conflito, na comunicação, no amor-próprio, e no amor que damos ao lugar que habitamos e que nos sustém. Na minha prática, questiono recorrentemente de que maneira o espaço é definido pelas formas como nos relacionamos com nós próprias, porque é aí que encontro uma forma de ir além das contenções da assimilação francesa — essa prisão que, por tanto tempo, nos definiu. É uma espécie de atalho: conectar-nos com o lugar onde estamos é espiritual porque é sobre escutar, primeiro, o espaço e a frequência interiores e exteriores, e, depois, a pausa transformadora que os separa.

    As práticas narrativas que tenho aprendido com o Colectivo de Prácticas Narrativas oferecem subcorrentes para seguir, guiadas por mapas que sugerem onde iluminar e destacar as histórias partilhadas. Por outras palavras, estes mapas assistem-nos na transição de um território para outro — o território das identidades preferidas, o território do problema, a paisagem de ações e a paisagem de significados. Orientam a mudança da enunciação do “eu” ou do “nós” enquanto o problema, para a enunciação do problema em si, juntamente com a nossa relação com ele. Este processo convida à reconsideração das ações enquanto escolhas feitas em relação a situações ou decisões, fundadas em valores pessoais e crenças protetoras.

    A água influencia as emoções, e as emoções influenciam a água. Com Célia, Chloé, Murielle e Nouma, nadamos juntas quase todas as vezes que nos encontramos e conectamos para o projeto Our Listening. O rio e o mar são sempre um espaço transformador para nós.

    JM + LS: Minia, obrigado por partilhares o teu tempo, perceções e desenvolvimentos do teu processo. O que emerge desta conversa é uma prática fundada na presença — não como um estado passivo, mas como uma forma de atenção ativa e relacional. Pelas experiências pedagógicas do Semillero Caribe, pelas instalações e imagem em movimento que abrem espaço à escuta e opacidade, e pelos mais recentes gestos colaborativos, o teu trabalho resiste à extração, convidando à cocriação enraizada no cuidado, na sintonia, e na poética. Instalação e vídeo são, aqui, práticas que estruturam a experiência — pelo ritmo, pela respiração, e pelos seus intervalos — tanto quanto recipientes de conteúdo. O que a tua prática torna claro é que a aprendizagem, como a cura, não é linear: move-se pela sensação, pelo silêncio e pela vontade da permanência da complexidade. Propõe um modo de estar junto — que honra tanto o que é visto como o que é sentido, tanto o que é falado como o que é suprimido.

    Minia Biabiany, Flè a poyo, restauring the body, vídeo, 5,52 min, 2014. Cortesia da artista.
    Minia Biabiany, Tonbé lévé, ramifications du temps, horizons cyclone. Exposição na Wi'an art, Mémorial Acte, Guadalupe. Cortesia da artista.

    Tradução EN-PT: Marta Espiridião
    Nota da tradução: A tradução levou em consideração a linguagem inclusiva de género, e o ênfase propositado na utilização de termos no feminino por parte da artista.

    Imagem de capa:
    Minia Biabiany, pawòl sé van, vídeo HD, 13 min, 2020. Cortesia da artista.

    João Mourão e Luís Silva são co-directores da Kunsthalle Lissabon, fundada por ambos em 2009. Foram os curadores do Pavilhão de Portugal na 59.ª edição da Bienal de Veneza (2022). Uma selecção de projectos recentes que curaram inclui exposições individuais de Mounira Al Solh (Museu de Serralves, Porto, Portugal), Jonathas de Andrade (CRAC Alsace, Altkirch, França e MAAT, Lisboa, Portugal), Manuel Solano (Pivô, São Paulo, Brasil), Pedro Barateiro (Fundação Carmona e Costa, Lisboa, Portugal) e Carla Filipe (MAAT, Lisboa, Portugal). Actualmente, estão a preparar a primeira grande exposição institucional de Inês Zenha no CA2M, em Madrid, e posteriormente no CAM Gulbenkian, em Lisboa. Enquanto co-directores da Kunsthalle Lissabon, apresentaram exposições individuais de Sonia Gomes, Teresa Solar, La Chola Poblete, Gabriel Chaile, Sheroanawe Hakihiiwe, Ad Minoliti, Zheng Bo, Laure Prouvost, Sol Calero, Petrit Halilaj e Naufus Ramírez-Figueroa, entre outros. Para além da sua prática curatorial, João Mourão e Luís Silva colaboram regularmente com várias publicações e editaram diversas monografias.

    Notas de Rodapé
    1. Tradução livre.
    2. Pesticida químico, tido como altamente poluente e tóxico, cuja utilização era regular nos territórios das Caraíbas dominados pela França até à proibição global da sua utilização em 2009 na Convenção de Estocolmo. Só em 2024 é que o governo francês assumiu publicamente a responsabilidade pela contaminação de clordecona que afeta os solos e as gentes em Guadalupe e na Martinica. (N.T.)
    3. Grupo indígena das ilhas caribenhas. (N.T.)
    4. Tradução livre.
    5. Tradução livre.