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Contemporânea

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    Alexandra Balona
    Fluid Prospections

    No terreno instável da transformação ecológica e epistémica, Fluid Prospections surge como uma investigação performativa sobre materialidades, metáforas e metodologias fluidas e oceânicas. Integra um projeto mais amplo da Contemporânea, com direção artística de Celina Brás, que investiga o híbrido como processo de negociação e diálogo potenciador de novas formas de conhecimento, reforçando tanto a potência poética como a dimensão política da arte. Articula imagem em movimento, performance, som e edição, convocando práticas artísticas que problematizem o híbrido enquanto condição instável e frágil, de fusão ou alienação — matéria sensível, campo de ação e produção de múltiplas possibilidades. Estes instrumentos, de inter-relação e contaminação, constituem, na arte contemporânea, um espaço privilegiado de liberdade, consolidação e confronto de forças e dinâmicas associadas às poéticas do hibridismo, imaginários transnacionais, outras identidades, culturas e discursos.  

    Fluid Prospections, realizado no Porto em junho de 2025, entre a Praia da Granja e o espaço de arte independente Rampa, reúne práticas artísticas que fluem entre meios e disciplinas, confrontando legados dicotómicos — entre terra e mar, humano e não humano, natureza e cultura, legados históricos e ecologia contemporânea. Enquanto programa situado, negoceia o limiar atlântico entre a costa e a urbanidade, e dialoga com reflexões feministas, pós-humanas, de antropologias oceânicas e dos legados do Atlântico Negro. Propõe eventos de escuta não de identidades fixas ou categorias estáveis, mas de processos híbridos de inter-relação e imersão. 

    A água, como refere Astrida Neimanis, não é simplesmente aquilo que sustenta a vida, mas aquilo que (recon)figura a vida de novo. Não somos meramente seres que contêm água; somos corpos de água — porosos, gestacionais, relacionais, envolvidos em ciclos hidrológicos que precedem e excedem o indivíduo (Neimanis, 2017:1). Uma ontologia aquosa corrompe a ficção iluminista do sujeito autossuficiente, desloca a ilusão patriarcal e colonial de coerência, autonomia e domínio. Em alternativa, argumenta Neimanis, a nossa condição incorporada torna-se um «hidrocomum mais-que-humano», onde as distinções entre sujeito e ambiente se dissolvem (2, trad. da autora). Figurarmo-nos como corpos aquosos é, de certo modo, abraçar uma ética e uma política fundamentadas na fluidez, na situacionalidade e no devir contínuo. 

    Nesse sentido, Fluid Prospections, tece relações entre uma política de localização e a expansão do híbrido através da lente da fluidez. Convoca os espaços intersticiais e metafóricos evocativos do oceânico: das zonas liminares, híbridas e muitas vezes negligenciadas onde matéria, memória e significado circulam em fluxos submersos. Cada artista encena um ponto de entrada único nessas epistemologias aquosas, compondo coletivamente respostas incorporadas à precariedade ecológica, ao legado colonial e à necessidade urgente de repensar a relacionalidade. 

    O programa teve início na costa atlântica, com uma Caminhada de algas, orientada por Elina Stolde, do colectivo Gata da Mata, uma oficina de partilha de conhecimento e de degustação sobre várias espécie de algas do ecossistema costeiro da Praia da Granja. Este ato de caminhar com e entre as algas — de provar, nomear e aprender — re-situa o conhecimento num tessitura sensual e multiespécies. Recorda, em certa medida, o apelo de Neimanis a modos de conhecimento «gestacionais» (7), e coloca em primeiro plano a temporalidade da experiência e a partilha coletiva e situada. As algas aqui não são meros recursos, mas agentes de relação, conectores entre terreno local e metabolismo planetário. O comestível torna-se político: recuperando formas ancestrais e comunitárias de nutrição, resistindo a economias extrativistas e retalhando os fios entre corpo, território e alimento. 

    As epistemologias fluidas iniciadas na costa continuam nas camadas subterrâneas do pensar especulativo em Invenção do pensar, de António Poppe. Em diálogo com um coral-cérebro, Poppe convida-nos a imaginar a cognição como algo mais do que humano — um processo poroso e polifónico no qual o pensamento flutua através da palavra, dos minerais e da poesia. O coral, como organismo hermafrodita produtor de plâncton, torna-se um emblema do que Stefan Helmreich descreve em Alien Ocean (2009) como o oceano alienígena: um local onde as fronteiras da vida são continuamente reconfiguradas, ligando «o microscópico ao macrocósmico, as bactérias à biosfera, os genes ao globo» (Helmreich, 2009: ix). A performance-solilóquio de Poppe colapsa a lacuna entre organismo e pensar, tornando a cognição um processo metabólico — que resiste à abstração seca da lógica cartesiana e devolve o pensamento às profundezas fluídas da incorporação. 

    O meu útero não está na europa, de Raquel Lima, articula voz, imagem em movimento, e evocação ritualística, oferecendo uma investigação epigenética, holística e artística sobre a relação entre a ancestralidade uterina e os movimentos intuitivos. Resgata relações embrionárias entre a mandíbula e o pélvis, a voz e o trauma da diáspora negra, procurando práticas de autocuidado, cura e libertação. Partindo do conhecimento de que “a cabeça racionaliza, a voz expressa, mas o útero guarda memórias”, Lima reativa o arquivo afetivo silenciado carregado nos corpos das pessoas historicamente excluídas das narrativas racionalistas e eurocêntricas da subjetividade. Nas suas palavras: «Alguns úteros gritam em silêncio o que outros diriam se não tivessem sido historicamente silenciados.» Esta afirmação articula uma epistemologia profundamente decolonial, que ressoa com o apelo de Paul Gilroy para centrar as contra-histórias e os conhecimentos fugitivos da diáspora africana. 

    Em The Black Atlantic (1993), Gilroy teoriza o Atlântico não apenas como um espaço de violência colonial, mas como uma formação cultural fluida e transnacional — uma “contracultura da modernidade” que emerge através do deslocamento, exílio e resistência dos povos negros na Europa, nas Américas e na África (Gilroy, 1993: 1). Neste quadro, o Atlântico Negro é constituído por rotas em vez de raízes, por uma rede de circulações e práticas crioulizadas que desestabilizam a fixidez da identidade nacional, racial ou cultural. A recusa de Raquel Lima — «o meu útero não está na Europa» — é um ato de deslocamento epistémico. Desidentifica-se das geografias normativas do conhecimento colonial e insiste num remapeamento diaspórico fundamentado nas experiências vividas, incorporadas e intergeracionais de mulheres negras. 

    A performance de Raquel Lima encena essa multiplicidade através da voz, do gesto e do corpo, recusando a divisão entre afeto e intelecto, entre memória somática e crítica política. Se, como argumenta Gilroy, o legado da escravatura produziu uma “visão dupla” do eu — fragmentada, mas crítica —, então esta performance de RaquelLima torna-se um local onde a consciência fragmentada não é patologizada, mas reivindicada como estratégia de cura e reparação. 

    A rejeição de Gilroy ao nacionalismo cultural em favor de genealogias híbridas e entrelaçadas encontra um eco vívido na insistência de Lima no útero como um local de memória compartilhada — não limitada pela biologia ou geografia, mas moldada por histórias sobrepostas de violência, resistência e cuidado. Desta forma, o meu útero não está na europa canaliza a estética e a ética do Atlântico Negro: móvel, híbrida, incorporada e desafiadoramente aberta. 

    Colónia, de Mariana Vilanova, aprofunda o compromisso do programa com a vida microscópica, os imaginários subaquáticos e o pensamento pós-antropocêntrico. A sua performance mergulha-nos no invisível — o mundo gelatinoso, vibrante e lento das colónias microbianas marinhas, tomando as algas como espécie exemplo. Como observa Helmreich, os micróbios tornaram-se figuras centrais na ciência marinha contemporânea, incorporando uma dupla visão do oceano: como um lar familiar e um outro radical (Helmreich, 2009: x–xi). O trabalho de Vilanova ressoa com essa oscilação. Articulando som, imagem em movimento e performatividade de matérias mais-que-humanas, convida a auscultar criaturas cuja temporalidade e escala escapam à perceção humana, mas cujos processos vitais sustentam ecossistemas inteiros. Fazendo-o, Colónia desestabiliza as hierarquias antropocêntricas, evocando uma reimaginação do cuidado, da atenção e da escala. O oceano, aqui, além de apenas vasto e sublime, torna-se íntimo e estranho — um local de frágeis interdependências e parentescos microbianos. 

    O ciclo de performances findou com Waterbowls, de Tomoko Sauvage, um concerto que traduz o aquoso em vibracional. Ao transformar taças de porcelana cheias de água em instrumentos eletroacústicos, Sauvage dá voz ao inaudível, ao mínimo, às matérias ar-água em colisão, ao que se evapora. O seu trabalho é uma meditação sobre a ressonância, o feedback e performatividade da matéria. Ao animar «o inanimado», Sauvage realiza um hidrofeminismo sonoro — que ouve a própria agência da água, os seus ritmos e humores, a sua potencialidade de moldar e ser moldada. Na sua paisagem sonora, ouvimos o eco do oceano alienígena de Helmreich, onde as tecnologias sonoras se tornam ferramentas para perceber a alteridade marinha. Reitera-se a ondulação da ética mais-que-humana de Neimanis — uma ética que emerge não do controlo ou do domínio, mas da sintonia, da amplificação e do co-devir. 

    Em conjunto, as performances em Fluid Prospections encenam uma série de encontros com a multiplicidade líquida: a sua capacidade de nutrir e destruir, conectar e dissolver, lembrar e transformar. Articulam-se na fluidez híbrida e em metáforas líquidas como espaços de possibilidade, de desaprendizagem e de reconfiguração 

    Como Neimanis recorda, “figurar-nos especificamente como corpos de água enfatiza um conjunto particular de ensembles planetários que exigem a urgência de uma resposta  (5). Fluid Prospections responde a esse apelo. Encena a fluidez não apenas como objeto de reflexão, mas como lugar de experiência. Questiona modalidades das margens líquidas da vida contemporânea. Como pode a arte — através da sua capacidade de ensaiar, perturbar e especular — ajudar-nos a reimaginar as relaçoes com, através e enquando seres aquosos? Que futuros podem surgir se nos permitirmos ser guiados, literalmente, pela fluidez da interdependência? 

    Fluid Prospections propõe sensibilidades, e encena, em certa medida, formas híbridas de hidrocomuns: pensares entre o humano e o não humano; resgates generativos da memória do Atlântico e da diáspora negra; micro-territórios oceânicos tão alienígenos quanto prolíferos; improvisações eletroacústicas de água e som. Recusando estagnação, individualismo e excepcionalismo, o híbrido confere tempo e espaço para uma política e ética da fluidez identitária, mais-que-humana e relacional, reconhecendo que justiça ambiental é indissociável de uma transcorporalidade planetária.  


    Programa

    Sexta, 27 de junho, Praia da Granja
    10:00 – 13:00 — Gata da Mata, Caminhada de algas, conversa e degustação

    Sábado, 28 de junho, Rampa
    17:30 — Abertura
    18:00 — António Poppe, Invenção do pensar
    18:45 — Raquel Lima, O meu útero não está na europa 
    19:30 — Mariana Vilanova, Colónia
    20:15 — Tomoko Sauvage, Waterbowls
    21:00 — Encerramento


    Referências bibliográficas 

    —Neimanis, A. (2017). Bodies of water: Posthuman feminist phenomenology. Bloomsbury Academic. 
    —Gilroy, P. (1993). The Black Atlantic: Modernity and double consciousness. Harvard University Press. 
    —Helmreich, S. (2009). Alien ocean: Anthropological voyages in microbial seas. University of California Press. 

    Direção Artística
    Celina Brás

    Curadoria
    Alexandra Balona

    Artistas
    António Poppe
    Gata da Mata
    Mariana Vilanova
    Raquel Lima
    Tomoko Sauvage

    Local
    Praia da Granja
    Rampa, Porto

    Organização
    Contemporânea

    Apoio
    DGArtes

    Date
    27.06 — 28.06.2025

    Tradução PT-EN
    Sérgio Leitão

    Entrada
    Livre

    Alexandra Balona é investigadora e curadora independente, sediada no Porto. Licenciada em Arquitetura (FAUP), é doutoranda em Culture Studies na European Graduate School & Lisbon Consortium. É co-fundadora de PROSPECTIONS for Art, Education and Knowledge Production e integra a equipa de programação da Rampa. É co-curadora de Cidadãos do Cosmos, uma exposição de Anton Vidokle, no âmbito do projeto Future Past Imaginaries que inclui a participação de Ece Canli, Alice dos Reis e Mariana Vilanova; co-curadora de Um Elefante no Palácio de Cristal (Galeria Municipal Porto, 2021). Foi curadora de Abertura, Impureza e Intensidade. Olhares em torno da obra coreográfica de Marlene Monteiro Freitas (Teatro Municipal do Porto, 2020), co-curadora de Metabolic Rifts (Museu de Serralves e Teatro Municipal do Porto, 2017–2018), co-editora de Metabolic Rifts: Reader (2019) e de An Untimely Book (2018). Escreve sobre artes performativas no jornal Público e publica em revistas como Contemporânea e Art Press.