Tendo intermitentemente passado, nos últimos cinco anos, alguns meses na Bélgica, um país composto por puxadores ao contrário fixados às portas dos apartamentos e máquinas de venda automática excessivamente cobertas de fitas de aviso que anunciam o seu mau-funcionamento — emblemas das peculiares, embora operativas, opções tornadas tesouro nacional pela inspirada conta de instagram “Belgian Solutions”, que documenta as soluções surreais para os problemas da vida diária belga —, não me surpreende que um dos políticos mais homofóbicos do Parlamento Europeu tenha procurado imunidade diplomática após ter sido apanhado numa festa de sexo gay e drogas, durante as restrições do confinamento do Covid-19, no coração da sua capital.
Descendo a tubagem da Rue des Pierres para escapar da soirée e fugir à polícia, que rapidamente o deteve, o eurodeputado de origem húngara (e aparentemente no armário) József Szájer— que, durante 30 anos, pressionou continuamente por uma agenda autoritária e agudamente conservadora ao serviço do partido no poder, o Fidesz de Viktor Orbán — depressa descobriu que o aparato público não era bem a solução belga que esperava. Com este envolvimento num escândalo de forma tão notória, foi-lhe negada a imunidade, tendo sido forçado a demitir-se do cargo político e a emitir um pedido de desculpas público direcionado à sua esposa, colegas e concidadãos, isto antes de se retirar para um relativo anonimato, devido à pura absurdidade da sua conduta imprópria.
Enquadrando este desastre no paradigma surrealista da história da arte pelo qual a Bélgica é mais formalmente conhecida, o artista português, sediado em Bruxelas, Luís Lázaro Matos — já em si um conhecedor da provocação, tendo anteriormente infestado a biblioteca do Kunstmuseum em Basel com uma série de pinturas que exibiam uma cacofonia de animais a fornicar, por ocasião do Art Basel Parcours de 2023 — ressuscitou o tormento de Szájer para consumo cultural na exposição coletiva institucional Painting After Painting - a contemporary survey from Belgium [Pintura Depois da Pintura - um estudo contemporâneo da Bélgica], realizada no Stedelijk Museum voor Actuele Kunst (S.M.A.K.) em Ghent. Sendo um dos cinco artistas comissionados para criar uma obra in situ, Lázaro Matos apresenta Diplomatic Immunity (The Eurorats) [Imunidade Diplomática (Os Eurorratos)] — uma instalação de grande escala que funciona como um retrato compósito onde reimagina a fatídica noite de Szájer, numa ficcionalização dos eventos decorridos pós-escândalo. Dominando o centro do espaço, e a maior sala concedida à exposição, a instalação é composta por uma carta de demissão fabricada e uma série de pinturas sobre um mural azul-celeste de uma sequestrada bandeira europeia, na qual as estrelas douradas, representativas da moral da unidade e da democracia, foram substituídas por um anel de espermatozoides amarelos, que remetem de forma absurda para uma pose típica de um grupo de nadadoras sincronizadas.
Esta abordagem alucinatória e irónica à criação de imagens — uma característica distintiva da obra de Lázaro Matos — continua a manifestar-se ao longo das pinturas que associam Szájer e os seus companheiros de festa a um ajuntamento de míticos híbridos e animais, cujas escapadelas alucinogénicas podiam servir uma narrativa melodramática saída de uma telenovela queer, ou uma sinopse homoerótica superlativa para uma peça do tipo Grindr o musical, que se desenrola como uma sequência de eventos através das cinco telas, dispostas em formato de storyboard. Envoltas num frenesim de narrativas coloridas à la Picabia, conseguido através de um jogo de transparências, a orgia de entidades articula uma atmosfera que funde um hedonismo despreocupado com um delírio induzido por alucinogénios, acentuado pelas idílicas paisagens neon que frequentam (e que floresceram como consequência do confinamento) e pelos azuis, rosas e laranjas do céu crepuscular no qual o mural da bandeira da UE se desvanece. Indefinível pelas polaridades do dia e da noite, o descomprometido reino do crepúsculo é palco para a dupla vida de Szájer, que, ao adotar tendências pós-binárias — tal como o Projeto Europeu, recorrentemente situado nas encruzilhadas da negociação —, também pode ser definida por períodos de transição e transformação.
Evocando o duplo sentido do roedor noturno como político astutamente traiçoeiro e estereótipo pejorativo para homens homossexuais à procura de um encontro casual, Szájer domina as cenas como o protagonista que interpreta o eurorat antropomórfico: frequentemente representado em plena performance num varão de strip, transcende a sua descida pela conduta de águas durante a fuga policial para uma coreografia ficcionalizada, embora fabulosamente camp. Em comparação com o seu ensemble teatral, aparentemente relaxado e ligeiramente curioso, se não gentilmente lascivo, Szájer parece mais animado, alheio ao facto de estar a dar tudo no que viria a ser a sua 'festa de despedida'. O recorrente motivo fálico do telescópio (como o da cobra) é, ao mesmo tempo, o falo literal de um homem e uma 'ferramenta' cuja lente, quando não está promiscuamente bloqueada pelo traseiro de Szájer, aponta para lá das limitações da sua tela, para as cenas de outras pinturas ou para a vastidão cosmológica do eurocêntrico céu da meia-noite belga. Manifestando o presságio iminente — tão vividamente monumental como a sua enormidade para transcender as pinturas em janelas para o apartamento que acolhe a soirée —, qualquer cautela para não ser apanhado, despedido e cancelado é eclipsada pela moca quetaminada que associa o anel de espermatozoides amarelos da bandeira ao esfíncter anal de Szájer, pressionado contra a lente do telescópio enquanto dança no varão. Da mesma forma, as pinturas figuram uma série de corujas que, com toda a sabedoria que possuem, conjuram um olhar que parece conscientemente quebrar a quarta parede; no entanto, com as suas cabeças viradas num ângulo antinatural de 180°, é fácil assumir a sua perceção psíquica perdida num transe nebuloso induzido por drogas, deixando-as incapazes de prever a exposição iminente, ou de compreender a carta de demissão de Szájer exibida através das cinco janelas opostas.
Respondendo publicamente à sua homossexualidade clandestina, e à congregação que violou as regras da COVID-19 representada nas cinco pinturas correlacionadas, Lázaro Matos apresenta um documento fabricado cuja leitura se aproxima mais da poesia do que de uma declaração pública formalizada, substituindo qualquer remorso sincero ou formalidade típica por uma postura otimista, e elevando a seriedade do falso tormento à altura da farsa através da sua execução indolente. A vexação é intensificada pela tensão entre a encantadora caligrafia infantil da demissão e o seu endereçamento ao membro mais sénior do Parlamento Europeu, cuja autoridade — subentendida pelos austeros painéis de vidro e pelo espaço burocrático da instituição — parece uma caricatura de si mesma.
Citando Oscar Wilde, o genial poeta irlandês e agent provocateur da sociedade vitoriana, “estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós estão a olhar para as estrelas”, evoca-se o celestial como símbolo espiritual de orientação, sugerindo que a revelação pública da orientação sexual de Szájer, através do anel de espermatozoides, foi de algum modo predestinada, concedendo-lhe a oportunidade de viver uma vida autêntica, livre de hipocrisia e vergonha. Lázaro Matos parece observar o escândalo com uma certa indiferença benigna, não oferecendo uma resolução, mas apresentando-o como uma condição para a esperança. Ao comparar o político húngaro a Oscar Wilde — que não foi apenas ostracizado pela sua comunidade, mas forçado ao exílio após ser condenado por "indecência grave" —, o artista encoraja a aspiração de olhar para lá das dificuldades imediatas na face da adversidade, anulando qualquer humilhação através do recurso ao humor. Apesar de ter caído em ruína profissional, tal como Oscar Wilde, a carta de demissão propõe que há uma certa libertação quando se perde tudo, e que (à semelhança do legado de Wilde) o espetáculo em torno da violação das regras de Covid, que proporcionou a emancipação de Szájer, destina o político a tornar-se um ícone dos direitos homossexuais.
Ao assinar com o pseudónimo eurorat, Lázaro Matos alude à tragicomédia de Szájer sem o nomear explicitamente, uma vez que o artifício e o efeito de declarar (negativamente) a subjectividade do protagonista, por implicação e não por afirmação, universalizam um aviso para todos aqueles que levem uma vida dupla, tal como insinuado pelo uso do plural eurorats no título.
Paralelamente aos híbridos queer antropomórficos que acolhem a obsolescência do pensamento binário — aqui evocando a natureza matizada dos nossos desejos e impulsos sexuais enquanto agentes de um progressismo bilateral —, e equiparando-se aos visitantes e à forma como estes são fisicamente forçados a negociar os vários pontos de saída e entrada da sala para aceder ao resto da exposição, a própria Bélgica é um país de identidade nacional complexa. Sendo um reino de intriga diplomática, que fomenta a divisão distrital entre flamengos de língua holandesa, valões de língua francesa, e uma pequena população germânica a oeste, os curadores da exposição chegam inclusive a afirmar o absurdo de limitar a pintura belga às fronteiras do país, com o objetivo de promover um intercâmbio multinacional e intergeracional entre os 74 artistas que nele residem. Refletindo as nuances da vida contemporânea, em que o pessoal é sinónimo de político, e o escrutínio público está tão generalizado como a consciência dos pronomes, Diplomatic Immunity (The Eurorats) está incluído numa secção da exposição intitulada Mirror on Society [um espelho na sociedade], a uns meros 56 km da conduta de águas pluviais que Szájer desceu em Bruxelas, e na qual foi entretanto fixada, em solidariedade, uma moeda húngara de 20 forintos.
Luis Lázaro Matos: Diplomatic Immunity (The Eurorats). Vistas da exposição no S.M.A.K., Bélgica, 2025. Cortesia do artista e S.M.A.K.
Tradução EN-PT
Marta Espiridião