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    Soberanias, Ativismos e Espiritualidades Audiovisuais

    Soberanias, Ativismos e Espiritualidades Audiovisuais



    Amado Villafaña, Pablo Mora, David Hernández Palmar, Nelly Kuiru,
    Olowaili Green, Mileidy Orozco Domicó, Laura Huertas Millán

    Esta é a versão escrita de uma conversa virtual com mais de oito horas de duração, que mantivemos durante três sessões ao longo do mês de fevereiro de 2022, entre Amado Villafaña, David Hernández Palmar, Nelly Kuiru, Olowaili Green, Mileidy Orozco Domicó, Laura Huertas Millán e eu. A convite da Laura, assumi o compromisso de escolher os participantes, um grupo de amigas e amigos cineastas de diferentes nações indígenas da Colômbia, e desempenhar funções de coordenação e moderação. Não foi fácil realizar o diálogo coletivo que inicialmente chamamos de Ecologias tecnológicas, descolonizar o encontro. Às imposições de isolamento social impostas pelas autoridades sanitárias do nosso país, durante a pandemia do COVID-19 — que nos obrigou a permanecer em nossos lugares de residência, distantes uns dos outros —, se somaram as dificuldades de comunicação via internet da maioria de nós, que, afastados das grandes cidades, impediram que desfrutássemos de uma cidadania digital plena, e que se traduziu em que nem todos os participantes pudessem assistir a cada uma das sessões.

    Participaram Olowaili Green, do povo Guna Dule de Urabá, conectando-se desde Medellín, Antioquia; David Hernández Palmar, que pertence ao povo Wayuu da Colômbia e da Venezuela, no norte do continente sul-americano, mas vive longe dali, em La Jagua, Departamento de Huila; Laura Huertas Millán, cineasta e curadora colombiana, residente em Paris, França; Nelly Kuiru, do povo Murui-Muina, de La Chorrera, conectou-se de Leticia, Amazonas; Mileidy Orozco Domicó, Emberá Eyabida da selva antioquena, que migrou para o território Kamentzá, no Departamento de Putumayo, e participou de lá; Amado Villafaña, habitante de Ikarwa, no território Arhuaco da Serra Nevada de Santa Marta; e eu, Pablo Mora, antropólogo e cineasta, morador de La Calera, no planalto andino do centro do país.

    Fui o responsável por transformar o que foi dito oralmente durante as sessões gravadas em um texto para leitura, que foi transcrito literalmente por Clara López Gómez e totalizou pouco mais de oitenta páginas. Utilizei a estratégia da transformação midiática, ou seja, houve uma intervenção que, sem desviar das ideias expressas oralmente, transformou o que foi dito, buscando uma coerência discursiva de acordo com critérios de seleção lexical e ordenação sintática, além de seguir regras gramaticais e convenções ortográficas e de pontuação das estruturas textuais. Como se sabe, a transformação da oralidade carrega os perigos de uma traição imposta pela tecnologia da escrita. Por isso, a versão final escrita foi devolvida a todos os autores para comentários e autorizações. Por comum acordo, o texto é de propriedade coletiva, e somos autores em condições de igualdade. Essa autoria compartilhada significa também que todos aceitamos sua divulgação na revista World Records Journal, entidade que financiou o encontro, e que sua circulação é livre e gratuita.

    — Pablo Mora

    Pablo Mora (PM)

    Queríamos propor alguns temas à partida. O primeiro é a tecnologia, o técnico. Como alguns povos canibalizam a tecnologia ocidental e a apropriam, e o que está em jogo nessa domesticação? Do ponto de vista de cada povo e independentemente da trajetória pessoal de cada um de vocês, é certo que existem versões distintas do significado das tecnologias audiovisuais. Quais perigos e vantagens têm essas tecnologias para as agendas políticas e estéticas dos povos?


    Laura Huertas Millán (LHM)

    Nesse aspecto, seria interessante formular outras continuidades na história do cinema. A versão clássica nos diz que o cinema foi inventado na Europa e depois chegou aos outros lugares. Porém, se imaginarmos uma história com uma temporalidade contrária, seria como dizer que o cinema foi resultado de processos de visão e conhecimento que já existiam, que já estavam aqui [nos territórios indígenas], e que o cinema foi uma continuação desses processos. O tema da legitimidade em relação a essa tecnologia que já existia antes não foi somente uma questão de apropriação [por parte dos povos indígenas]; essa linguagem já era conhecida de alguma maneira, talvez através de outra técnica ou tecnologia, porém já havia um sistema de comunicação e de visão presente.


    Batismos Arhuacos e palavras para curar

    Amado Villafaña (AV)

    Todos os filmes que realizamos enquanto coletivo, sejam do Zhigoneshi ou do Yosokwi, são preocupações que vêm dos mamos1. São assuntos que vivem em nós, estão ali, trata-se apenas de revivê-los e expressá-los. O que o fragmento [do filme Resistencia en la Línea Negra (2011)] mostra é que tudo o que não pertence ao território é um elemento desconhecido; então, quando o adentra, seja para ser consumido ou usado como ferramenta de trabalho, é necessário adotá-lo dentro do plano espiritual, direcioná-lo para a proteção do território e para o conhecimento do que chamamos kunsamu — ou norma de vida.

    Fala-se em batismo, mas, no plano espiritual, trata-se de adotar elementos alheios ao território, registrando no mundo espiritual algo que é estrangeiro, que não é originário dali. Se não há esse registro, produzem-se danos em vez de benefícios. É uma adoção, ainda que muitas vezes chamemos “batismo”. Trata-se da incorporação de elementos que não pertencem ao território, que lhe são desconhecidos e que, por isso, precisam ser adotados para que se tornem úteis à defesa do território e da cultura. As pessoas encarregadas de realizar a atividade audiovisual, por adentrarem em um território sagrado, devem estar "registradas" no mundo espiritual para poder exercer tal atividade. É como obter um visto para entrar nos Estados Unidos.

    Então, os mamos os preparam para que possam chegar a esses lugares sagrados sem que isso se reverta em uma dívida que o mundo espiritual possa cobrar deles na forma de doenças ou problemas. Essa atividade filmada [o batismo] é o que foi feito no lugar sagrado de Domingueka, no território kogui. Também esclareço que a adoção, o batismo ou a preparação para realizar a atividade é igual [nos povos] wiwa, kogui e arhuaco; não há nenhuma diferença, apesar de termos idiomas distintos.


    PM

    Além do trabalho em Domingueka, o mamo Jacinto, que já deixou esta Terra, fez o mesmo com o equipamento da sala de edição de Zhigoneshi, em Santa Marta. Nesse momento, entendi o trabalho do mamo como uma proteção para que esses filmes, que iam nascer, não fossem mal utilizados, mas que fizessem parte da defesa do território, nesse caso de Gonawindúa Tayrona.

    Amado, para contribuir para a descentralização da cronologia histórica dominante, vocês afirmam que os pais espirituais das imagens que brilham — espelhos, câmeras, telas de vídeo — existem na Serra Nevada de Santa Marta, e foi a eles que vocês dirigiram o pedido de autorização para usar os equipamentos de gravação audiovisual que começavam a utilizar. Em outro fragmento [do filme], um mamo kogui afirmou: “Esta tecnologia não é dos bonachis [brancos], esta tecnologia é nossa”. Foi também uma maneira de legitimar o seu uso.


    Nelly Kuiru (NK)

    Cada povo tem a sua forma de “batismo”, e concordo com o Amado, para os povos indígenas não importa se estão na Serra ou na Guajira ou no Amazonas, existem certas semelhanças ainda que o realizemos de maneiras diferentes. No nosso caso, em relação às ferramentas que chegaram aos territórios amazônicos — por exemplo, o machado —, consideramos que foram trazidas praticamente como uma forma de nos colonizar. Na época dos barões da borracha, nossa mão de obra e nossos produtos foram mudados. Para nós, a borracha era algo que tradicionalmente se “colhia” para fabricar bolas e utilizar, precisamente, no ritual da bola. Com a sua exploração com fins industriais, nos trouxeram certas ferramentas; o que nossos avós fizeram foi curá-las, apaziguá-las, porque eram ferramentas de fogo vindas de outro lugar. Há que arrefece-las, dissemos, não tanto batizá-las, mas orientá-las, para que não haja inconvenientes ao utilizá-las no trabalho.

    Em relação às ferramentas tecnológicas, nesse caso, as câmeras, é o mesmo. É algo novo que chega ao território e, obviamente, há que curá-las, adoça-las, arrefece-las, para que possam servir como ferramenta de transmissão, como meio de luta e de fortalecimento das próprias comunidades. Nesse sentido, a adoção se faz nos espaços de mambeadero, através de plantas tradicionais. Todas as noites se curam as diferentes ferramentas. As pessoas são, inclusive, orientadas, para que não tenham acidentes no dia-a-dia [ao usá-las].


    David Hernández Palmar (DHP)

    (Voltando a abordar o trabalho de Amado), Palabras Mayores (2009) me parece um filme fundacional, não apenas por ser um coletivo indígena a fazer cinema, mas também pelo que contam. Ao ver o excerto [do filme Resistencia], me surpreende — talvez não tenha percebido antes porque o espiritual é um pouco cotidiano — o fato de que há um tema de semanticização, a partir da espiritualidade, da tecnologia que vem servir ao legado indígena. Também me deixa perplexo o facto de o cinema se tornar parte da narrativa, de os protagonistas questionarem o meio ou a câmara. No meu radar, há muito pouca produção cinematográfica indígena em que isto possa ser visto. Fascina-me muito, e penso que outros povos indígenas da Serra Nevada, como Rafael Mojica Gil do povo Wiwa, também o fazem.


    Mileidy Orozco Domicó (MOD)

    Ao início [do filme], sente-se a estranheza dessas ferramentas, no plano em que se veem os mamos reunidos sobre uma rocha, a olhar para os aparatos que estão embaixo, como se olhassem para algo muito exterior, que não os pertence. Isso é muito significativo. Também me chama a atenção o fato de os mamos se referirem à imagem como uma mãe. Dão-lhe essa abordagem maternal à imagem. Seria bom se o Amado ou o Pablo fizessem referência a esse vínculo com a figura feminina. Por que a imagem é a mãe, por ser feminino o artigo em “a” câmera, ou há algo além?

    Tudo isso me faz pensar que o coletivo ao redor do Amado construiu um novo imaginário. Dentro do que vi, ao menos dentro do país, não há reflexões similares. É nova a ideia de que esses elementos tecnológicos necessitam ser batizados. Também me perguntava porque o Amado fala uma parte em espanhol, como se estivesse falando com alguém de fora. É algo interessante porque parece que está falando com alguém que não é da sua comunidade, como se fosse entrevistado.


    PM

    Infelizmente, o Amado não pode responder porque perdeu a conexão. Há muito o que dizer. A primeira é que ele está falando ao espectador não-indígena. Isso é evidente em todos os filmes de Zhigoneshi. Diferentemente de outras estratégias de comunicação, como a dos nasa, por exemplo, que falam a si mesmos, Amado fala ao mundo não-indígena, para que entendam a cultura arhuaca. Essa é uma posição muito consciente sobre desde onde se está falando.

    Não me posso subtrair de ter vivido essa experiência do batismo ao lado deles. O que está ali não é somente batizar no sentido católico, mas legitimar, se apropriar da tecnologia. E vale ressaltar que não se tratava de uma encenação para o público interessado no mundo indígena — mas de uma maneira de mostrar que, muito antes do documentário ser realizado, os pais e mães espirituais da imagem já tinham sido nomeados.

    Fizemos muitas viagens com o Amado a lugares remotos e alguns mamos explicavam: “Aqui, na foz deste rio, estão os pais e mães espirituais das coisas que o homem branco inventou, o bonachi, o irmão mais novo: os trens, os aviões, as câmeras, toda a tecnologia que existe”. Ou seja, essa tecnologia não é alheia a eles. E é justamente por isso que me parece relevante. Outros mamos falaram sobre quem são esses pais e essas mães, donos das coisas que brilham, dos espelhos e do sol. O mesmo mamo Shibulata, protagonista do documentário, relacionava o mundo das imagens com certas máscaras de ouro que representam o deus Mukueke, que é o sol. Há, portanto, uma conexão entre o sol, o brilho, a luz e a imagem. São ligações que devemos tentar compreender, mas que, por vezes, ficam aquém da compreensão. É claro que muitos mamos não conheciam as câmeras e as viam com estranheza e desconfiavam dos indígenas que as usavam. Amado disse que aos mamos parecia que a sua atividade, sendo ele um homem mais velho, era a de uma criança pequena. Mas, pouco a pouco, perceberam que era útil.


    Olowaili Green (OG)

    Há algo muito particular que gosto sobre o trabalho de Amado, que é sempre mostrar além da câmera, a maneira que realiza os seus documentários. Me parece ser uma marca do Amado que nem todos temos. Esse “selo” do Amado em seus documentários me parece muito bonito. É uma grande referência para nós, que viemos de uma geração mais jovem e o consideramos o pai do documentário indígena na Colômbia. As palavras que me vêm à cabeça, vendo esse excerto do filme, são resistência, respeito e sabedoria.

    Se aprendi algo, é que, cada vez que vamos gravar, devemos perceber se estamos em lugares sagrados, com os mais velhos. Nós podemos ir estudar fora do território, na cidade, e ter licenciatura, pós-graduação ou doutorado, mas, cada vez que chegamos às nossas comunidades, não nos veem como “ah, a estudada”; Não, você é apenas mais um membro da comunidade, e aqui são mais importantes os nossos sábios e sábias, nossos caciques e cacicas, o cabildo2, o governador. Devemos demonstrar respeito perante a nossa terra porque ela é como o nosso corpo. Eu não gosto que alguém que apenas conheço me toque a cara; é o mesmo com alguns espaços desta Terra: são lugares sagrados aos quais primeiro há que pedir permissão para poder realizar a ação que queremos.


    PM

    Os autores não apenas incorporam as tecnologias de vídeo como protagonistas, mas também falam sobre como se faz o filme, o que, na terminologia dos teóricos do cinema, se denomina o modo reflexivo do documentário, ou seja, é como colocar um espelho no próprio exercício cinematográfico. Esse é um gancho que deu aos filmes de Zhigoneshi uma certa distinção.

    Além disso, muitas pessoas não-indígenas do meio nos disseram: “não queremos ver mais indígenas com câmeras”. Era uma crítica à ideia de estar exotizando o indígena com uma câmera, como se fosse algo extraordinário. Em 2013, a Cinemateca de Bogotá publicou um catálogo que preparamos da Daupará - V Mostra de Cinema e Vídeo dos Povos Indígenas da Colômbia. Muitas fotografias de indígenas gravando, com a câmera, circularam nesse catálogo: Rafael Mojica, wiwa, Leiqui Uriana wayúu, os companheiros nasa de cinema Minga e tantos outros. Ao ver as fotos, a coordenadora editorial da Cinemateca exclamou: “Não, já chega de mostrar essas imagens!”. E ela tinha razão até certo ponto. Mas acho que, na altura, era uma resposta ao argumento de que o mundo indígena era incapaz de dominar a tecnologia audiovisual. E, de fato, na história do cinema, essa ideia foi representada: as primeiras câmeras que os índios papuas da Nova Guiné veem com espanto no documentário First Contact, de Bob Conolly e Robin Anderson ou, sem ir tão longe, o rosto surpreendido dos Embera em Luz en la selva, de Enoc Roldán. Sempre me pareceu falsa a representação que se faz da compreensão do cinema que os indígenas tiveram inicialmente.


    LHM

    Essa conversa está apaixonante. O que me parece revolucionário é que há uma reivindicação de que a essência do cinema já está presente e se expressa em outras materialidades. Não é uma relação em que chega essa tecnologia de fora e há que se pôr a par — mas que já pertence ao saber interno, ao ecossistema próprio dos povos indígenas. Isso me parece muito forte. Outra coisa que me chama a atenção é que há um momento em que se colocam as câmeras sobre o solo, em conexão direta com a terra. Aí vejo algo muito sugestivo de uma interação viva entre a ecologia e a tecnologia em que não há separação, mas que ambas as coisas estão em íntimo diálogo.


    PM

    O solo em que a equipe de Zhigoneshi colocou os aparatos é de pedra, não é qualquer solo. Essas pedras foram escolhidas por quem realizou a operação espiritual porque é a partir dessas pedras que se estabelece a comunicação com o mundo não-visível, chamemos-lhe assim. Não é qualquer pedra que tem essa conectividade; são pedras que conectam com esses mundos espirituais.

    Outra coisa importante de ressaltar é que [o filme] Resistencia en la Línea Negra levou cinco anos para ser realizado, não foi um documentário feito em dois ou três meses. Isso também nos dá uma noção dos tempos arhuacos de produzir filmes. Há uma resistência à imposição dos modos industriais de produção audiovisual. E alguns dos que aparecem ali já morreram, hoje são fantasmas na tela, como os mamos Bernardo Moscote, Jacinto Salabata e José Romero. Eles não viram o resultado final, o filme completo.


    MOD

    Ainda que eu tenha vindo a aumentar a velocidade nas minhas últimas produções, também tenho esse mesmo conflito — e acredito que todos os que estamos aqui conversando —, sobre os tempos e formas de produzir uma obra. Para fazer um filme, geralmente as pessoas têm que se sentar com as autoridades do seu território para lhes contar o que pensam em fazer, e têm que esperar que as assembleias decidam se é permitido ou não, se lhes agrada, e como vão apoiar a realização.


    Soberania Audiovisual

    LHM

    David, ao ler a sua produção teórica e a reflexão que escreveu precisamente acerca da soberania audiovisual, tenho uma pergunta: como o seu trabalho teórico se entrelaça ou se relaciona com o seu trabalho cinematográfico? Ou melhor, como o trabalho da escrita/teórico é informado pelo olhar do cineasta?


    DHP

    A soberania audiovisual se vai construindo no momento em que os cineastas indígenas decidem quem é a audiência, ou para onde vão, se é para a sua comunidade ou para falar ao mundo, como no caso de Amado. Sinto que todos os trabalhos de Amado são manifestos para a humanidade, pertencem à estratosfera.

    Agora vivemos um momento em que é preciso ver a soberania nas equações de produção. E essas precisões estão a ser feitas, sobretudo, por irmãs cineastas indígenas que estão analisando se há uma relação de extrativismo ou de correspondência em projetos que não são de indígenas. Não basta simplesmente colocar como produtor um indígena. Ao gravar histórias, deve haver reconhecimento na produção, coprodução, direção e co-direção. O que isso implica, para que a sociedade não-indígena não entenda que já não se pode contar as nossas histórias? Temos essas discussões nas convocatórias públicas.

    Acredito que as perguntas-chave para os autores não-indígenas são: por que você acredita que tem o direito de contar esta história? E, depois: conhece ou não uma pessoa da minha cultura que possa contar essa mesma história? Há, portanto, um questionamento sobre o que se pode construir com a soberania audiovisual.


    OG

    Um indígena pode não contar histórias do seu povo e também está tudo bem, porque não é por ser indígena que só podemos contar histórias dos nossos povos. Vêem-nos como realizadores indígenas e nos dizem que só contamos histórias dos nossos povos. Tampouco estou de acordo que tenham que nos elogiar porque somos indígenas. Somos seres humanos; simplesmente temos outra cultura, outros idiomas, outros pensamentos.


    DHP

    Ao início, me vali muito da ideia de que “não me interessa o mercado”, de que “de qualquer forma, como já estamos a falar uns com os outros e há mais pessoas envolvidas, não tenho de convencer ninguém”. Nessa época, tínhamos muito orgulho em dizer “não participamos”. No entanto, agora é necessário que tudo o que construímos politicamente seja gerido também no mercado. Há pessoas que usam o termo cinema indígena para referir a quem utiliza a cultura indígena como substrato para contar uma história. Porém, esses não propõem nada, nós seguimos na iniquidade e em um campo fechado demais para poder fazer co-produções.

    Não estou a dizer que esta é a fórmula para todos, porque há autonomias audiovisuais que simplesmente colocam as obras no youtube, na internet. Essa é uma maneira de afirmar que “é urgente contar para denunciar ou mostrar que estamos vivos”. Porém, acredito que estamos em um momento em que a soberania está se exercendo com as participações também por cotas indígenas nas convocatórias. Nelas, a estética comunitária não deve reduzir o que merecemos economicamente. Porque também confundem a solidariedade dos povos indígenas e a utilizam como um motivo para baratear os custos de logística e alimentação. O fato de compartilharmos a mandioca e o queijo de bom grado não significa que isso seja usado como um argumento em detrimento de um financiamento robusto. Se dão ao outro filme um bom financiamento, eu também mereço. Estou dizendo que não deve haver uma distinção entre “super cineastas” e outros que não o são, em termos de carreira ou trajetória. A soberania audiovisual se vai construindo também a partir dessas reflexões.

    Escrita Cinematográfica e Tecido

    LHM

    Me perguntava, ao ver o filme do David, ainda que seja uma pergunta que se possa estender à Olowaili e à Mileidy: como o tecido enquanto tecnologia pode influenciar a linguagem cinematográfica, em termos de inspiração, mas também formalmente ou espiritualmente?


    OG

    Não é que possa influenciar, mas sim que realmente influencia a nossa prática. Quando falamos de tecnologia, sinto que nós, os povos [indígenas], possuímos uma tecnologia ancestral desde que nascemos. A comunicação também sempre esteve presente, já que o tecer faz parte da nossa educação desde pequenos. Desde que nascemos, vemos nossas avós, tias e mães tecendo, seja qual for o tipo de tecido; no meu caso, é a mola, no caso de Mile [Mileidy], são as miçangas e as camisas, e no caso dos wayuu, são as redes e as mochilas. Particularmente, todas as produções cinematográficas que pude realizar estão vinculadas ao tecido; têm sido uma inspiração.

    O meu primeiro curta-metragem foi sobre a mola. Se o selo de Amado é o cinema dentro do cinema, no meu caso, conto as histórias desde a origem, não importa a temática. Sempre falo da Lei da Origem porque, no nosso povo, para contar as histórias, voltamos ao princípio. Assim como disseram ao David que seu mini-curta é wayuu, no meu caso, as narrativas são muito gunadules porque é o que somos.

    O tecido tem uma grande influência porque é a nossa essência, é o que mostramos, é quem somos, e é realmente a nossa escrita. Uma mola pode ser um roteiro e um filme, assim como uma missanga é uma história. Não se pode dissociar esse modo de ser, esse tecido, das produções feitas em nossos territórios ou dentro dos nossos contextos.


    MOD

    Evidentemente nossas formas de fazer são muito diversas. Há um professor que acompanho, Miguel Rocha, com quem temos um processo chamado Mingas de la imagen, em que falamos sobre oralitegrafias — que são, basicamente, todos esses sistemas de escrita e conhecimento que nós, povos, temos e que vão além das escritas alfabéticas, como a dança, a música e o tecido. A respeito disso, quero compartilhar algumas imagens com vocês.

    A imagem [do filme Bania, de Mileidy Orozco Domicó] é de um personagem chamado Caragabí, uma adaptação na minha comunidade do personagem Deus. Caragabí foi uma figura trazida pela evangelização cristã, mas nós, dentro do nosso fazer e da nossa narrativa, continuamos a reproduzir a mesma concepção de um Deus Filho que vem à Terra. Teci uma pulseira em preto e branco que ele tem na mão direita e que, em uma interpretação visual ancestral, representa a organização, a comunidade. Na cena, ele eleva as mãos e, em uma delas, vemos a missanga com a sua simbologia. Embora a missanga esteja fora de contexto — porque estamos narrando a origem do mundo e as missangas são objetos já industrializados —, não quis deixar de mostrar essa técnica, que também nos identifica como Embera. São pequenas linguagens que apenas nós podemos entender porque pertencemos a esse contexto.

    E a simbologia do outro personagem que está representado, a menina, tem relação com uma formiga. Ela tem uma missanga azul que simboliza uma gota d'água. A história fala sobre a origem das formigas congas, que são aquelas que têm uma gotinha d'água na ponta do nariz. Pessoalmente, sempre tento conscientizar sobre tudo que nos faz ser Embera. É meu vínculo não terreno com minha comunidade, é como a herança ancestral. E, se me perguntam se há algo a que a minha obra se assemelhe, digo que se parece a um tecido, porque, além de tudo, é algo que me ensinaram desde pequena. Então, para mim, é muito mais fácil relacionar as etapas da tecelagem com missangas às etapas da produção audiovisual. A relação entre tecido e cinema vai além de uma metáfora entre nossas práticas artesanais e as práticas audiovisuais, porque no tecido encontramos ciclos que se repetem, que voltam ao mesmo ponto. Então, há outras formas de narrar e de escrever essas histórias; há também cromatismos e usos de cores, como a Olo [Olowaili] experimentou em seus filmes. Na verdade, é algo que me proponho como um desafio para criar.


    DHP

    O tecido é um referente para o cinema indígena. Há dois anos, descobri que, em 1985, o cineasta Luis Lupone impulsionou o Primeiro Workshop de Cinema Indígena no México, que foi realizado por oito mulheres da comunidade de San Mateo del Mar, em Oaxaca, entre elas Teófila Palafox, do povo ikoot, considerada a primeira cineasta indígena do México. Teófila era parteira, curandeira e tecelã. Durante o workshop, as mulheres diziam: 'o tema do roteiro é muito violento e, além disso, escrever o quê?'. Então, elas teceram o roteiro, literalmente. Cada cena foi tecida, de modo que, no final, o roteiro era uma coleção de vários tecidos. Foi assim que elas conseguiram estruturar em suas mentes o que viria primeiro, o que viria depois, ou seja, uma questão de pontos: 'qual é o próximo ponto que vamos dar?'. Isso me pareceu fascinante. Teófila falava sobre o quão importante foi fazer cinema naquele momento, porque projetos extrativistas estavam deslocando forçadamente pessoas em seu território. Agora não há mais nada.


    LHM

    Gosto de pensar que o cinema como conhecemos hoje, como uma matéria especulativa de reflexão, de olhar para o mundo, tem muito a ver com o tecido em seu aspecto mais intelectual. No Ocidente, tende-se a reduzir o tecido artesanal a algo que não envolve pensamento. Mas as histórias dos tecidos de todas as latitudes nos mostraram o contrário: é uma ação extremamente matemática que implica uma memória muito ativa. De fato, uma câmera digital e um tear são baseados em um sistema binário de zeros e uns. Existem conexões tecnológicas que estão presentes tanto nos teares quanto nas câmeras. Os teares são uma antecipação ou precursores das câmeras.


    PM

    Acredito que, no tema do tecido, valeria a pena estabelecer uma equivalência entre tecer imagens e tecer. É na montagem que se encontraria essa conexão de como costurar histórias.


    LHM

    Penso também em todas aquelas mulheres editoras na história do cinema, em muitas geografias distintas, que foram as costureiras dos filmes, aquelas que colaram as imagens. Conhecemos montadoras mulheres desde os primórdios do cinema, então é hora de arrancar o cinema do mito viril do fuzil e reivindicar outras analogias.

    Porém, a equivalência não está apenas na montagem. Desde a concepção do cinema, as mulheres têm feito filmes, mostrando e olhando para outras histórias. No cinema de Alice Guy, por exemplo, o filme é editado na câmera. A câmera é um aparato de montagem. É um modo de pensar, é um aparato de visão, é uma tecnologia de narrativa. Tudo isso se assemelha ao tecido. Não é apenas a montagem, é a experiência e o modo de criar percepção no cinema que se assemelha em muitos aspectos ao tecido — como bem indicou Mileidy ao falar do tempo circular do tecido e a incidência em sua escrita cinematográfica.

    A ontologia do tecido e a do cinema compartilham mais do que a simples analogia da montagem. É visão, é tempo, é corpo, é narrativa, é pensamento abstrato. Em muitas latitudes distintas da ocidental — as orientais, por exemplo —, as mulheres têm descrito a equivalência entre o tear e a câmera cinematográfica, ou entre fazer cinema e tecer, nas práticas modernas e contemporâneas.

    Escrita e voz dos universos originários

    MOD

    Quando falamos sobre onde nasce o cinema, eu digo que, assim como no norte os mamos dizem que a mãe e o pai da imagem estavam desde muito antes nesse lugar, sinto que entre nós, da mesma forma, desde a oralidade, até mesmo desde o útero, esteve presente a origem e a concepção da narrativa. Porém, além das missangas, do canto, das danças e da música, que se possam transferir informações para outros formatos já é outro assunto.

    O que quero que vejamos é que as narrações, dentro da nossa comunidade, são uma técnica, têm a sua própria ordem.

    Esse [fragmento do filme Mu DRUA, de Mileidy Orozco Domicó] é um conto narrado e cantado, que a minha avó compôs como representação do que ela via na natureza. Dentro de nossa comunidade, chamamos truambis a esses cantos; uma parte deles são inspirados no cotidiano. Então, o que a minha avó fez foi compor uma canção para a memória familiar para quando ela falecer. Ela cria uma alegoria: ‘eles a trouxeram como a uma paca’, que é um animal do nosso território. E começa a se aprofundar em um monte de elementos que vinculam o humano ao território, à natureza.


    OG

    A Mile [Mileidy] e eu temos compartilhado espaços de comunicação, de encontro. Também a tenho acompanhado a tecer algumas de suas produções. Ela sempre me pareceu uma mulher que, ainda que seja muito jovem, tem uma mentalidade ou uma inteligência que não é de alguém da sua idade. Não sei o que se passa com as Embera, mas sinto que são muito maduras, realmente conscientes do que fazem. A Mile tem essa particularidade e, claro, ela esteve na academia e se formou na universidade, mas sem deixar a sua cultura de lado. Faz tudo muito respeitosamente, plano por plano, como ela quer. É muito criteriosa quando cria as histórias, muito cuidadosa na hora de fazer as produções e de decidir quais planos vão entrar. Suas histórias foram vistas em muitas partes do mundo e aqui na Colômbia também. Foi uma das primeiras mulheres que começou a trabalhar com o audiovisual, ao menos aqui em Antioquia. Gostei de tudo que vi dela. Toda vez que ela ou qualquer uma de nós conta uma história, nos estamos abrindo ao mundo, nos dando a conhecer intimamente. Cada vez que vejo um filme dela sinto que estou a conhecer melhor Keratuma, não a Mile, mas Keratuma.


    DHP

    O que sinto precisamente no cinema de Mileidy é que, através dos seus projetos, está a curar e a ligar coisas — o que, em particular, também estou fazendo. Para mim, o cinema tem sido um modo de conseguir me conectar de uma maneira menos tácita — porque, de alguma forma, me foi dado no território — com os meus pais, ambos wayuu, falantes de  wayuunaiki. Como dizia ao princípio, desfruto dos filmes dos meus irmãos e das minhas irmãs porque com eles eu também vou curando, conectando coisas, entendendo outras e tendo outras possibilidades para não apenas entender o mundo, mas também de sanar curiosidades e questionamentos próprios. Este campo é muito distinto por causa da condição de ser indígena. E há muitas questões que temos de resolver, quer sejamos rurais ou urbanos. Hoje em dia, quando me perguntam porque faço o cinema que faço, respondo “porque gosto, porque tenho vontade, porque quero e, além disso, porque os meus ancestrais trabalharam três mil anos atrás para que eu pudesse fazer isso”. É tão simples quanto isso.


    PM

    Todo o filme de Mu DRUA está dominado por um tom pessoal que é muito cativante. Está em primeira pessoa, que é uma característica própria dos trabalhos da Mileidy, e que ressoa muito no contexto dos filmes ocidentais que têm a família como ponto de partida. Essa abordagem subjetiva também tem permitido que o trabalho dela tenha uma ótima recepção entre o público não-indígena. Essa condição também me parece estimulante para a comunicação indígena, para a produção audiovisual indígena. Há sempre uma tensão entre o ser individual e o ser coletivo entre os povos.

    Para dizer de outra forma: quando o Amado fez Nabusímake, memorias de una independencia (2010), com os seus filhos e si próprio como protagonistas, ele foi criticado por alguns membros da cidade dele por fazer um filme de família. Eles não disseram de maneira gentil, mas cínica: ‘é um filme sobre a família do Amado’. Em outras palavras, não é tão importante quanto se fosse um filme comunitário. Há, então, umas tensões interessantes entre o “eu” e o “nós”, em relação às produções artísticas ou intelectuais dos e das diretoras indígenas.


    DHP

    Penso que nos reafirmarmos como indígenas é uma questão coletiva, sem ignorar que também temos a capacidade individual de ver coisas, fazer coisas que não comprometem o coletivo, que não comprometem o ser político. Isso é algo que estou assumindo agora. Antes, eu não pensava em espaços organizacionais, mas, em uma conversa com a Irmã Luna Marandémico, ela me disse: ‘é que nós já estamos lá [trabalhando em comunidade] e, por causa da nossa condição precária ou da desigualdade das nossas comunidades, também transferimos isso para a nossa forma de interpretar e de fazer filmes’. Precisamos reforçar essas posições que podem ser individuais — não individualistas —, ou individualidades coletivas que vão contando a história. E, nisso sim, Olowaili e Mileidy foram mais longe que eu.


    MOD

    Em relação às colectividades e aos interesses pessoais, o que eu pensei, o que sinto, é que não tenho o direito de falar pelos outros porque não os conheço. É por isso que, de algum modo, as histórias que consegui transferir para o formato audiovisual foram porque estou segura, com a sinceridade e o conhecimento de quem está ao meu redor. É estranho falar do que não se sabe, do que não se conhece.

    A tecnologia cinematográfica e a encenação do visível e do invisível

    MOD

    Volto ao que a Laura estava a dizer sobre como esta parte tecnológica é uma extensão do olhar, do movimento. Tenho um postulado em quase todas as minhas obras — as obras que são obras, porque também faço produções audiovisuais sem coração, que são aquelas pagas: institucionais, registros. Nas que são coracionadas, sinto que a relação com o tecnológico surge do orgânico. Tenho pavor aos tripés nas minhas obras audiovisuais. Não gosto de ver coisas estáticas porque é muito semelhante ao olhar físico e biológico, por isso quero ver algo mais artesanal, que se mova, que se sinta que a câmara está lá, que há alguém, que se sinta a proximidade das relações humanas.

    Por exemplo, para o documentário Mu DRUA (2011), quando compartilhei os meus parâmetros com o diretor de fotografia, ele me disse: ‘como assim, sem tripé?’, ‘câmera em mãos?’, ‘e o foco?’; ele sempre havia trabalhado com tripé, e então se opôs. Essa decisão faz parte do desafio que tenho de tentar fazer com que a imagem e o som que ali estão não sejam o que eu, pessoalmente, costumo ver com os meus sentidos, mas sim tirar partido da tecnologia que pode chegar mais perto, que pode ouvir mais, que pode detalhar, que pode fazer-nos sentir movimentos e uma presença no espaço-tempo.


    LHM

    Quero perguntar a Mileidy sobre esse espaço noturno na sequência [do filme] que ela nos mostrou, que me deixou alucinada; essas imagens ficaram na minha cabeça, evocando um pouco a ligação entre o cinema e os mundos espirituais. Pergunto-me se esse espaço noturno tem uma força que nos convida a um mundo além do visível, para um mundo que existe de outras formas e que a prática cinematográfica convida, escuta, pode ver.


    MOD

    Apesar de todo um universo acontecer nesse horário, geralmente é pouco o que a noite nos conta nas realizações audiovisuais, porque fisicamente ela traz muitas limitações para a iluminação, som e outras coisas. Na cena em questão, foi muito lindo porque houve uma transformação do guião. O que aconteceu foi que choveu, e quando há chuva — principalmente à noite —, há muitos mais peixes. Assim, se tornou um momento muito bonito e fortuito para ir à pesca. Mais tarde, na montagem, percebemos que essa cena da pesca à noite estava muito ligada, como uma pequena metáfora, à narração que a minha avó cantava sobre a sua partida como se fosse uma paca. O documentário termina com outra cena muito bonita, à noite, quando nos sentamos à volta da fogueira a contar histórias, a conversar.


    LHM

    Edouard Glissant, um escritor do Caribe, fala muito sobre a opacidade e sobre como — vindo de um lugar que foi representado de maneira errônea, colonial —, quando se toma o poder sobre as imagens e narrativas levadas ao exterior, há também, na perspectiva dele, um grande valor político na opacidade, em não nos darmos a conhecer de maneira transparente ou didática, em preservar esses espaços de mistério, esses espaços noturnos, como uma maneira de expressar politicamente o irredutível da identidade. Então, nas imagens da noite que a Mileidy cria, eu projeto essas outras reflexões acerca dos limites da visibilidade e também encontro ali um gesto cinematográfico muito forte, quando se coloca o público nesse limite do que pode e não pode ver.


    PM

    Mas consideremos também os gestos extra-fílmicos, no sentido de levar a invisibilidade às suas últimas consequências: não se deixar filmar, não penetrar. Não é a representação da opacidade no cinema, mas o não-fazer cinema, o não deixar-se ver. No Amazonas é onde há uma grande potência do invisível em muitos sentidos, não somente no sentido óbvio do que não conhecemos e não podemos ver, mas dos [povos indígenas] não contactados e da sua renúncia à fotografia e ao cinema. Há, aí, uma postura que é extremamente poderosa neste mundo dominado pela imagem: não querer ser exposto com violência ao espetáculo da intimidade.


    LHM

    Eu sinto isso também na maneira como você filma, Mileidy, com planos muito fechados, e naqueles que têm pouca contextualização também; há aí uma opacidade que é muito poética, muito evocativa e ao mesmo tempo preserva, protege, cuida.


    DHP

    Gosto muito do que o Edouard Glissant propõe como o direito à opacidade. Para mim, esse direito à opacidade, ou o tema das claridades, implica uma proposta política. Os povos não-contactados enfrentam o problema de que a sua sobrevivência está precisamente atrelada ao fato de não serem visíveis. É uma grande reflexão para a contraparte, indígenas que trabalham com o cinema para contar as suas histórias.

    Me recordo de um obituário que escrevi quando morreu Óscar Catacora. Alguma vez o disse que em seu filme Winaypacha predominavam os planos abertos. E ele dava uma explicação espiritual de ser porque a natureza sempre havia sido muito generosa com ele. Mas também dizia que as suas referências eram Pasión de gavilanes para realizar filmes, Dragon Ball Z para a fotografia, e também Akira Kurosawa. Então, eu pensava ‘tem que ser mesmo indígena ou mesmo esquizofrênico para agarrar todas essas pontas juntas, e dizer que essas são as minhas referências para olhar, dirigir, e essas são as cores que quero para as minhas imagens’. Outra coisa que me marcou foi a sua postura como cineasta. Ele dizia: ‘a mim, não gostaria que me recordassem por ter realizado um filme pertinente; quero que me recordem como um bom cineasta’. Disso se trata o obituário que escrevi.

    A questão da opacidade vejo mais no que se conta ou não, além dos claro-escuro ou dos escuros. Passa pela decisão do que aparece no plano, por mais à noite que seja. Minha mãe me disse uma vez: ‘na sua vida, não pense jamais em gravar um crânio ou um segundo velório wayuu, porque o crânio é onde estão os pensamentos desse ser, dessa família, é o pudor dessa família, e é o primeiro que se retira quando se vai fazer o segundo velório e, se o filma, está manuseando e faltando ao respeito para com essa família’. A mim faz muita impressão quando vejo outros irmãos e irmãs, indígenas ou não, filmando o segundo enterro. Essa é a leitura que tenho do que se filma e não se filma, e é parte do direito à opacidade.

    Há que gerir essas coisas e não digo isso porque sou amargurado ou tenho raiva. No mundo do documental, da etnografia, se procura dar o maior detalhe para um contexto e para que as pessoas possam também ficar espantadas e digam: ‘ai, olha, tratam a morte assim ou assado’. Quando e como se pode parar a câmera, para que não seja extrativista? Em que momento o que é contado deixa de ter pertinência e passa a prestar um mau serviço ao decoro dos povos indígenas? Porque se permitimos, quando outros [não-indígenas] utilizarem esses eventos como referência, que autoridade restará para contrariá-los?